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POVOS QUILOMBOLAS NO BRASIL: INVISIBILIDADE, RESISTÊNCIA E LUTA POR DIREITOS - VERCILENE FRANCISCO DIAS
“ em decorrência de um Estado negligente e
violento com seu povo.
Para se ter um mínimo de respostas e
tentar assegurar a vida do povo quilombola
A TITULAÇÃO
Coordenação Nacional de Articulação das
DO TERRITÓRIO nesse contexto de pandemia da covid-19, a
Comunidades Negras Rurais Quilombolas
(Conaq) buscou o Poder Judiciário para de-
QUILOMBOLA É PASSO nunciar e fazer cessar violações e omissões do
governo ao não garantir a vida desse povo,
no contexto de crise sanitária global, diante
FUNDAMENTAL PARA A da realidade de violência estrutural enfrenta-
da pelas comunidades.
Por meio da Arguição de Descumprimento
EFETIVAÇÃO DE OUTROS de Preceito Fundamental (ADPF) Quilombola
742, proposta em setembro de 2020, o Su-
DIREITOS E GARANTIAS premo Tribunal Federal (STF) reconheceu a
Desses 295 títulos, grande parte foi emi-“ Enfrentamento aos efeitos da pandemia nos
vulnerabilidade estrutural dessa população
FUNDAMENTAIS e determinou à União que implementasse,
no prazo de 30 dias, um Plano Nacional de
quilombos, devendo, para tanto, constituir
um grupo de trabalho paritário em 72 horas,
para construção, discussão, implementação e
tida por órgão de regularização estadual ou monitoramento das ações determinadas.
em parceria com o Inca. São números ínfimos A decisão do STF, no entanto, não foi o
diante da quantidade de comunidades levan- bastante. Para que a União cumpra seu dever
tadas hoje no Brasil. A maior parte delas está constitucional, todos os dias é necessário que
em situação de insegurança territorial, o que os quilombolas cobrem a implementação das
acirra ainda mais os conflitos dentro dos ter- determinações do Supremo, que, após mais
ritórios quilombolas e tem comprometido a de dois anos de pandemia, foram cumpridas
segurança e ceifado a vida de várias de suas apenas parcialmente. Nesse cenário, somos
lideranças. barrados a todo momento, devido a diver-
Em decorrência dessa demora em cum- sos empecilhos impostos pelo governo, para
prir o mandamento constitucional, os povos tentar justificar o não cumprimento da deter-
quilombolas vem pagando a conta por vio- minação, como a alegação da inexistência de
lações dos seus próprios direitos e garantias orçamento para implementação da política
fundamentais. Essas violações prejudicam, quilombola.
de forma sensível, o desenvolvimento digno Como bem ressalta Selma dos Santos De-
desse povo fundador da identidade nacional. aldina, no Livro Mulheres Quilombolas: Ter-
A titulação do território quilombola é passo ritórios de Existências Negras Femininas, não
fundamental para a efetivação de outros di- existe boa vontade política do Estado brasilei-
reitos e garantias fundamentais, a exemplo ro, que se comporta como se estivesse fazen-
de políticas públicas de saneamento básico, do um favor a nós, quilombolas. É como se
saúde, educação, trabalho, acesso a crédito e fosse preciso bondade ou voluntarismo para
produção agrícola. cumprir nossos direitos constitucionalmente
A Constituição é nítida ao estabelecer o assegurados. Enquanto isso, o racismo estru-
dever do Estado de agir para assegurar a re- tural, que se ramifica nas instituições públicas,
produção física, social e cultural das comuni- formatando o Estado e a sociedade brasileira,
dades quilombolas. Porém, para esse Estado, faz com que o exercício do direito seja vivido
somos invisíveis, não bastando a garantia enquanto conflito e violência imediatos.
do direito, a obrigação do ente e o desti-
natário desse direito. Por isso, é necessário SAIBA MAIS SOBRE A AUTORA
que os quilombolas travem disputas todos
os dias para que seus direitos sejam respei- VERCILENE FRANCISCO DIAS
tados e que suas vidas não sejam ceifadas,
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