Page 24 - Política Democrática
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22   PORTA DOS FUNDOS - ANDRE AMADO                                           REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA










        Qual é a melhor maneira de ler obras dos grandes escritores? As duas jovens no
        restaurante tinham interesse real no que liam e pressa nenhuma em fazer os pedidos




                  SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR: ANDRE AMADO                         WWW.FUNDACAOASTROJILDO.COM.BR



      Foto: Madamebovary Reprodução                                             frente. Temos que descobrir primeiro
                                                                                quem nos conduza pela porta dos fun-
                                                                                dos desse mundo fabuloso da criação e
                                                                                produção literárias.
                                                                                  Deixa eu lhe dar um exemplo, seguia
                                                                                a tal de Clarinha. Há anos, queria ler
                                                                                a Odisseia, mas tinha medo. Foi quando
                                                                                um amigo me recomendou uma edição
                                                                                especial da Companhia das Letras. Uma
                                                                                introdução de um scholar americano e o
                                                                                prefácio do tradutor, que ganhou uma
                                                                                coleção de prêmios pelo trabalho, me
                                                                                chamavam a atenção para o que tinha de
                                                                                saber sobre a origem da obra, a polêmica
                                                                                da autoria da Odisseia, os termos da rela-
                                                                                ção entre os mortais, como Homero, e os
                                                                                deuses e as deusas protetores ou rivais, os
                                                                                percursos pelos mares da Grécia, as aven-
                                                                                turas e desventuras do herói grego em
                                                                                sua viagem épica de volta à casa, a efer-
                                                                                vescência em Ithaca, onde “os arrogantes
          Madame Bovary, filme de Sophie Barthes: a história de Emma, de Flaubert, ganhou versão para o cinema
                                                                                pretendentes” disputam a mão de Pené-
                                                                                lope e o reencontro, enfim, com a mulher
          Gostava do restaurante. Não cheirava  Cervantes, um Flaubert, um Proust ou  amada e a refrega com os competidores
        a comida e, em geral, atraía pessoas com  um Joyce sem ajuda? Acha que é capaz  pelo amor da amada. Só posso lhe dizer,
        certo charme. No almoço de hoje, sen-  de captar a complexidade dos persona-  Odete, que duvido que pudesse ter des-
        tadas a meu lado, duas moças davam o  gens, a teia entrelaçada do enredo, a  frutado tanto da leitura e viagens mentais
        tom do ambiente. Examinavam o cardá-  qualidade e a novidade da narrativa ape-  que empreendi não fosse a mão amiga
        pio como se fosse a orelha de um livro  nas por sua força de vontade?   do scholar e do tradutor na maçaneta da
        ou a sinopse de um filme. Tinham inte-  Eu também queria participar da con-  porta dos fundos da Odisseia.
        resse real no que liam e pressa nenhu-  versa, mas se me inclinasse um centí-  Olhei para Clarinha, a discurseira; olhei
        ma em fazer os pedidos. Só definiram  metro a mais na direção da mesa seria  para cima de minha mesa e me lembrei
        as bebidas – água sem gás para uma e  decerto acusado de assédio. Contive-me  do Mme Bovary, minha última compra no
        taça de vinho tinto para a outra – e logo  e ainda ouvi. A gente sempre precisa de  sebo. Assaltou-me um impulso juvenil de
        retomaram a conversa que deviam ter  alguém com intimidade familiar com as  interpelar a moça. Seria eu capaz de ler
        interrompido a caminho da mesa.     obras para trazer a nossos olhos, à nos-  com segurança o romance com que Flau-
          Já te disse, Odete, é perda de tempo  sa sensibilidade, as pistas iluminadas da  bert, dizem, reescreveria a história da lite-
        começar a ler as obras dos grandes escri-  arte desenvolvida por  aqueles gênios.  ratura  ocidental?  Não  hesitei,  armei-me
        tores, assim, diretamente, pela porta da  Em uma palavra, não dá para enfren-  de coragem, levantei-me e, livro debaixo
        frente. Você acha que pode encarar um  tar os grandes escritores pela porta de  do braço, tomei o rumo da saída.
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