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22 PORTA DOS FUNDOS - ANDRE AMADO REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA
Qual é a melhor maneira de ler obras dos grandes escritores? As duas jovens no
restaurante tinham interesse real no que liam e pressa nenhuma em fazer os pedidos
SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR: ANDRE AMADO WWW.FUNDACAOASTROJILDO.COM.BR
Foto: Madamebovary Reprodução frente. Temos que descobrir primeiro
quem nos conduza pela porta dos fun-
dos desse mundo fabuloso da criação e
produção literárias.
Deixa eu lhe dar um exemplo, seguia
a tal de Clarinha. Há anos, queria ler
a Odisseia, mas tinha medo. Foi quando
um amigo me recomendou uma edição
especial da Companhia das Letras. Uma
introdução de um scholar americano e o
prefácio do tradutor, que ganhou uma
coleção de prêmios pelo trabalho, me
chamavam a atenção para o que tinha de
saber sobre a origem da obra, a polêmica
da autoria da Odisseia, os termos da rela-
ção entre os mortais, como Homero, e os
deuses e as deusas protetores ou rivais, os
percursos pelos mares da Grécia, as aven-
turas e desventuras do herói grego em
sua viagem épica de volta à casa, a efer-
vescência em Ithaca, onde “os arrogantes
Madame Bovary, filme de Sophie Barthes: a história de Emma, de Flaubert, ganhou versão para o cinema
pretendentes” disputam a mão de Pené-
lope e o reencontro, enfim, com a mulher
Gostava do restaurante. Não cheirava Cervantes, um Flaubert, um Proust ou amada e a refrega com os competidores
a comida e, em geral, atraía pessoas com um Joyce sem ajuda? Acha que é capaz pelo amor da amada. Só posso lhe dizer,
certo charme. No almoço de hoje, sen- de captar a complexidade dos persona- Odete, que duvido que pudesse ter des-
tadas a meu lado, duas moças davam o gens, a teia entrelaçada do enredo, a frutado tanto da leitura e viagens mentais
tom do ambiente. Examinavam o cardá- qualidade e a novidade da narrativa ape- que empreendi não fosse a mão amiga
pio como se fosse a orelha de um livro nas por sua força de vontade? do scholar e do tradutor na maçaneta da
ou a sinopse de um filme. Tinham inte- Eu também queria participar da con- porta dos fundos da Odisseia.
resse real no que liam e pressa nenhu- versa, mas se me inclinasse um centí- Olhei para Clarinha, a discurseira; olhei
ma em fazer os pedidos. Só definiram metro a mais na direção da mesa seria para cima de minha mesa e me lembrei
as bebidas – água sem gás para uma e decerto acusado de assédio. Contive-me do Mme Bovary, minha última compra no
taça de vinho tinto para a outra – e logo e ainda ouvi. A gente sempre precisa de sebo. Assaltou-me um impulso juvenil de
retomaram a conversa que deviam ter alguém com intimidade familiar com as interpelar a moça. Seria eu capaz de ler
interrompido a caminho da mesa. obras para trazer a nossos olhos, à nos- com segurança o romance com que Flau-
Já te disse, Odete, é perda de tempo sa sensibilidade, as pistas iluminadas da bert, dizem, reescreveria a história da lite-
começar a ler as obras dos grandes escri- arte desenvolvida por aqueles gênios. ratura ocidental? Não hesitei, armei-me
tores, assim, diretamente, pela porta da Em uma palavra, não dá para enfren- de coragem, levantei-me e, livro debaixo
frente. Você acha que pode encarar um tar os grandes escritores pela porta de do braço, tomei o rumo da saída.