Page 22 - Política Democrática
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20   ROLAND BARTHES E EU -  ANDRÉ AMADO                                       REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA

        Roland Barthes e eu





        Difícil o diálogo com Roland Barthes, o pop-star do pensamento parisiense da década de 60



                  SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR: ANDRÉ AMADO                         WWW.FUNDACAOASTROJILDO.COM.BR


      Foto: google                                                              a construção temerária de Espinosa, o
                                                                                personagem central dos romances poli-
                                                                                ciais de Garcia-Roza, uma estante feita
                                                                                de livros, sem madeira, só livro sobre
                                                                                livro, como símbolo da instabilidade
                                                                                emocional e psicológica  do delegado.
                                                                                Nada disso: era a maneira de o autor
                                                                                enfeitiçar o leitor com desvios em rela-
                                                                                ção à narrativa central. Senti-me um
                                                                                gênio da hermenêutica – não é um ter-
                                                                                mo compatível com o vocabulário dos
                                                                                candidatos ao doutorado? E pude jurar
                                                                                que minha autoestima crescera alguns
                                                                                centímetros. Texto outro algum será
          Roland Barthes, escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês
                                                                                capaz de me assustar, prometi-me.
                                                                                  Olhei com sentido de superioridade
          Há alguns meses, comentei com um  argumento, mas, nem por isso, mantive  para a lombada do  Mimesis, mas me
                                                                                                      2
        amigo – agora ex-amigo, e vocês enten-  a amizade.                      deixei atrair por outro livro , cujo primei-
        derão porquê – meu projeto de fazer um   Tempos depois, envolvido em preparar  ro capítulo – uma verdadeira provoca-
        doutorado em literatura. Reconheci, de  a projetada tese, tropeço num texto de um  ção – tinha por título “O barômetro da
                                                                      1
        antemão, imensa insegurança quanto aos  scholar americano, Dennis Foster , e leio:  sra Aubain”. O autor, Jacques Rancière,
        fundamentos da teoria literária e pedi ajuda.   “Roland Barthes defendeu que deta-  deve ser aparentado do Barthes, tama-
        Sem hesitar, ele sugeriu-me ler, entre outros,  lhes descritivos, como o barômetro da  nho o entusiasmo de sua apresentação
        o Mimesis, de Erich Auerbach, e um artigo  sra Aubain – que resistiu a todas as  pela crítica especializada. Enfrentei a
        de Roland Barthes, “L´effect de réel” (“O  tentativas de enquadramento em uma  obra e entendi a primeira página. Senti
        efeito de real”). Não quis discutir, quem sou  teoria de uma dada ordem de obra sim-  a força do texto na segunda: “a análise
        para questionar um Barthes?, mas, no meu  bólica – não significava nada mais do  estrutural... deve justificar toda a super-
        francês, deveria ser “L´effect du réel” e não  que a realidade... Trata-se de um expe-  fície do tecido narrativo [e] ... justificar os
        “de”. Deixei passar. Compensava a expecta-  diente comum em bons autores para  detalhes supérfluos, o que acaba sendo
        tiva de que, em se tratando de um artigo,  distrair a atenção do leitor com pistas  mostrar que eles não são supérfluos, que
        seria, como de fato logo comprovei, curto.   falsas e, bem assim, retardar a decifra-  eles também têm um lugar e uma fun-
          Mergulhei na leitura. Não entendi  ção do enigma central da história”.  ção na estrutura”. Na terceira página,
        coisa alguma, além de registrar a exis-  Exultei de felicidade. Havia finalmen-  depois da afirmação de que “o roman-
        tência de um barômetro no meio da  te estabelecido diálogo com Roland  cista realista não pode pular da antiga
        sala da sra. Aubain, cena retirada de um  Barthes. Meu amigo, agora ex-, não me  ordem mimética para a modernidade
        livro de Gustave Flaubert. Uma certeza  podia ter dado, logo de saída, as pis-  autêntica, visto que a ordem do proces-
        eu tinha: a insignificância da minha con-  tas corretas para eu poder penetrar no  so significante tem sua lógica autôno-
        clusão ofendia a grandeza do afamado  tal artigo? Já não era importante. De  ma”, fechei o livro, escondi o “L´effet de
        pensador francês. Decidi compartilhar a  passagem, armara-me de argumentos  réel” no fundo da estante, logo atrás do
        perplexidade com meu amigo. De novo  para desmontar a versão de uma críti-  Mimesis, cuja visão também bloqueei, e
        sem hesitar, ele respondeu, Ora, André,  ca literária que insistia em interpretar  fui comer pipoca.
        se você cogita de fazer um doutorado
        em literatura tem de começar entenden-  [1] Apud Potter, D. “Backward construction and the Art of Suspense”, in The Pursuit of Crime. Yale Universsity Press, 1981.
        do Roland Barthes, e desligou. Aceitei o   [2] O fio perdido. Ensaios sobre a ficção moderna. Trad. Marcelo Mori. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2017
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