Page 17 - Revista Política Democrática nº 43 - Maio/2022
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MARCO MARRAFON - ENTREVISTA ESPECIAL




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                     de conhecimento. A humanidade está per-  vel nenhuma verdade. Se não é possível
                     dendo logos, entendido, desde os gregos,   nenhuma verdade, então, nós estamos
                     como razão e como capacidade de lingua-  vivendo um novo tempo sofístico onde o
                     gem. E é isso que nos distingue, em tese,   predomínio é de quem melhor argumen-
                     dos outros seres sencientes. Estamos per-  ta. O sofista Górgias dizia que o homem
                     dendo essa capacidade de reflexão, de fala   é a medida de todas as coisas justamente
                     e de sua representação simbólica. Hoje   por não acreditar em verdade ou falsi-
                     abrevia-se tudo, deturpa-se a linguagem.   dade ontologicamente falando. Quando
                     As pessoas não suportam mais a erudição,   Platão e Aristóteles resgatam Parmênides
                     a cultura se torna algo que não mais valo-  e instauram as hipóteses essencialistas,
                     riza o trabalho e o esforço. É muito difícil   eles percebem que a democracia ate-
                     compor uma sinfonia. Aprender a tocar    niense está em decadência e é preciso
                     violino exige disciplina.                uma noção de verdade, uma noção de
                       Vivemos o que se tem chamado de era    justiça para que os cidadãos possam, mi-
                     das narrativas combinada com movimen-    nimamente, balizar padrões de compor-
                     tos fortemente anti-iluministas, isto é,   tamento socialmente aceitáveis.  
                     anticiência e anticultura, no sentido eru-   De certo modo, movimentos, não só da
                     dito do termo. Eu não estou falando de   extrema direita, mas da esquerda também,
                     cultura popular, favorecendo o populismo.   contribuem para esse niilismo antirracio-
                     Somos ainda culpados por não ensinarmos   nalista que está na raiz da pós-verdade: se
                     um português decente, por não ensinar-   tudo é narrativa, não existe verdade e falsi-
                     mos lógica para as pessoas aprenderem as   dade e, logo, não há limites na ação huma-
                     contradições dos argumentos, por não exi-  na. Somos seres individualistas em uma era
                     girmos aprovação em matemática para que   sem limites: gostamos de ter a Netflix sem
                     as pessoas aprendam a raciocinar.        limites. Não posso esperar mais o capítulo
                       São saberes clássicos que continu-     da novela ou da série no dia seguinte, eu
                     am  fazendo  sentido,  e  esse  movimento   tenho que maratonar tudo numa noite.  
                     anti-iluminista deita raízes no niilismo   Esse contexto tem dado  ensejo a um
                     Nietzschiano, do antimodernismo que      novo  modelo  mental  no  qual,  especial-
                     vem crescendo no século XX como um       mente as novas gerações, têm tido muita
                     movimento contra verdades filosóficas,   dificuldade de aceitar o não, de compreen-
                     num movimento que vai desembocar no      der as dificuldades e o sofrimento positivo.
                     século XXI como a era das narrativas, ou   Vamos dizer assim, aquele sofrer que leva
                     da pós-verdade, como se não fosse possí-  ao crescimento, de você estudar e sentir




       MAIO  2022                               REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA                                    17
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