Page 22 - Revista Política Democrática Online nº 40 - Fevereiroo/2022
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ENTREVISTA ESPECIAL - RUBENS RICUPERO




                     A mulher até agora praticamente não ti-  novembro de 1831, a lei votada na épo-
                     nha voz, ocupava na maioria das culturas  ca da Regência Trina, quando o ministro
                     posição subalterna, dominada. Vivemos  da Justiça era o padre Feijó, proibia a im-
                     milênios, na maior parte da história, como  portação de africanos e determinava que
                     se a humanidade utilizasse apenas meta-  qualquer africano introduzido no Brasil, a
                     de do cérebro, agora passamos a utilizar a  partir daquela data, fosse imediatamente
                     outra metade”.                           libertado. Não aconteceu nem uma coisa
                       Esse exemplo pode ser adaptado ao nos-  nem a outra. Mais de um milhão de afri-
                     so propósito. Temos de indagar: “quais são  canos foram importados ilegalmente, com
                     as razões para crer que o terceiro século do  a conivência, a cumplicidade ativa das au-
                     Brasil será melhor que os dois anteriores?  toridades. O Brasil se tornou, assim, o úni-
                     Em outros termos, o que temos de fazer  co caso de país que teve uma escravidão
                     para que a realidade futura seja melhor  contra sua própria lei, ao menos no caso
                     que a presente e a passada?              dos escravizados chegados depois de 1831
                       Refiro-me  não  a  motivos  de  political  e de seus descendentes. Estou convencido
                     fiction, sim a motivos credíveis, razoáveis,  de que, em termos puramente jurídicos, os
                     quais são as condições para que o futuro  negros brasileiros teriam direito líquido e
                     do Brasil seja melhor que seu passado? É  certo a uma indenização porque o Estado
                     claro que cada um, cada setor tem de par-  brasileiro violou sua própria lei. A escravi-
                     tir de sua própria realidade para responder.  dão era legal, mas o tráfico não era.  
                     Não me cabe, por exemplo, falar em nome    Como mencionado antes, o processo de
                     dos negros, dos indígenas, dos marginali-  construir o futuro tem de ter duas etapas,
                     zados. Imagino que haverá muita queixa,  o cahier de doléances e o cahier d’espéran-
                     muita expressão legítima de mágoa contra  ces, e tem de dar voz a quem não tem
                     a história brasileira, que foi madrasta para  voz. Não é a minha voz. Ontem (3/02), por
                     muitos setores do povo.                  exemplo, conversei por zoom com a Marta
                                                              Suplicy sobre a exposição alusiva à Consci-
                                                              ência Negra da prefeitura de São Paulo, que
                    Foto: Reprodução/Youtube                  e agora se prepara a segunda. Ela talvez
                                                              teve uma primeira edição no ano passado

                                                              tenha como tema o bicentenário. Quem
                                                              deve planejar não seremos nós, a ideia é
                                                              chamar negros representativos para que se
                                                              organizem e digam o que esperar do ter-
                                                              ceiro centenário no Brasil. São os membros
                                                              da comunidade negra que têm de dizer o
                                                              que, do ponto de vista deles, desejariam
                       Esses setores  não têm razão  nenhuma   que fosse o terceiro século do Brasil.  
                     para fazer uma celebração festiva ou apo-    
                     logética do bicentenário. O índio no Brasil   RPD: Qual seria a melhor maneira de
                     viu sua condição piorada, passou a viver   seu ponto de vista de celebrar o bicen-
                     sob ameaça de extinção desde o começo    tenário?
                     da colonização dos portugueses. No ano
                     2000, na comemoração dos 500 anos da       RR:  Minha visão de brasileiro, de 84
                     chegada dos portugueses, o governo se    anos, descendente de imigrantes italianos,
                     esqueceu dos índios, o que causou natural-  embora muito pobres, branco, de olho
                     mente uma reação da parte deles de con-  azul, não é a mesma de outros brasileiros.
                     testação à comemoração do que para os    Tenho de comparar minha visão com a dos
                     povos originários não passara do começo   outros. O maior desafio da escolha do ob-
                     do extermínio, da escravização.          jeto de reflexão no bicentenário é que não
                       O negro então tem razões especiais para   podemos abarcar tudo, como uma espécie
                     ser contra o bicentenário. Logo no começo   de “museu de tudo”, desde agricultura, in-
                     da independência, pressionado pelos ingle-  dústrias, minas, instituições políticas, elei-
                     ses, o governo brasileiro assinou o tratado   torais,  cultura,  seria  uma  enciclopédia  do
                     para pôr fim ao tráfico a partir de 1830. Em   Brasil, isso não vamos poder fazer.   




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