Page 21 - Revista Política Democrática Online nº 40 - Fevereiroo/2022
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RUBENS RICUPERO - ENTREVISTA ESPECIAL
                     “                                        originários, a memória das mulheres, a



                                                              memória  de  todos  aqueles  que  nunca
                                                              tiveram  uma  posição  de  direção  do
                                                              processo histórico e, ao contrário, foram
                     O BRASIL SE TORNOU, ASSIM,
                                                              que não. O que existe na realidade é uma
                     O ÚNICO CASO DE PAÍS QUE                 oprimidos  e  marginalizados?  Acredito
                                                              memória fragmentada. A única maneira de
                     TEVE UMA ESCRAVIDÃO CONTRA               tentar juntar os fragmentos de memória é
                                                              dando  voz  às  pessoas,  em  uma primeira
                     SUA PRÓPRIA LEI, AO MENOS                etapa, para exprimirem suas queixas e, em
                                                              uma segunda etapa, para manifestarem o
                     NO CASO DOS ESCRAVIZADOS                 que desejariam construir.   
                                                                A cátedra José Bonifácio é algo de limi-
                                                           “  que espero possam ser compartilhadas
                     CHEGADOS DEPOIS DE 1831                  tado à USP. Por isso, preciso da ajuda de vo-
                                                              cês, para a melhor disseminação de ideias

                                                              pelo maior número possível de pessoas da
                                                              população. Reconheço para isso meus limi-
                     seja superada pelo processo eleitoral. A  tes: não conheço as pessoas representati-
                     partir de então, começará nosso terceiro  vas da comunidade negra, do movimento
                     centenário, oxalá sob o signo da esperança.    dos povos originários e outros similares.  
                       O historiador argentino Luis Alberto Ro-  Sobre como redespertar nos jovens a
                     mero, que escreveu ensaios interessantes  esperança, gostaria de contar experiência
                     sobre o bicentenário argentino, diz algo que  que tive, anos atrás, antes do ano 2000,
                     é evidente, mas vale a pena lembrar. Diz ele:  quando  estava ainda na UNCTAD. Na oca-
                     os grandes aniversários, como os centená-  sião, sugeri a Michel Camdessus, ex-dire-
                     rios de uma nação, impõem duas perguntas  tor do FMI e meu amigo pessoal desde os
                     obrigatórias, ou melhor, uma pergunta e um  tempos em que éramos ambos frequenta-
                     desafio, a primeira pergunta é: o que nós  dores da missa da igreja dos jesuítas de Ge-
                     fizemos? E o desafio é: o que nos falta fazer,  orgetown, em Washington, ideia inspirada
                     o que nós temos que fazer?               na Revolução Francesa. Como se sabe, a
                                                              Revolução teve sua origem na eleição para
                       RPD: Aproveitando esse gancho, per-    a Assembleia Nacional, do Terceiro Estado,
                     gunto o que podemos fazer para recu-     da nobreza e do clero, sobretudo a eleição
                     perar a imagem do Brasil no exterior e  para o terceiro Estado que se fez por paró-
                     infundir nos jovens a honra do serviço  quias. Em cada paróquia, as pessoas redi-
                     à pátria também no exterior?             giam um  cahier de doléances, um cader-
                                                              no de dores, de queixas, de reclamações.
                       RR:  Não me vejo em condições de di-   Milhares desses cadernos sobreviveram, e
                     zer o que o Brasil deve fazer. Posso dizer o  é isso que permite um retrato fantástico
                     que eu gostaria que o Brasil fizesse. É um  de qual era o estado da França no fim do
                     processo, não propriamente reservado a  Antigo Regime e na véspera da Revolução.
                     intelectuais porque a questão da comemo-  Todo ano, Camdessus reunia no verão, em
                     ração do bicentenário é um dever de cida-  sua  casa  de  Bayonne,  um  grupo  de  ami-
                     dania, que todos devem cumprir, isto é, a  gos para debater ideias. Naquele ano, o
                     ideia de comemorar, de lembrar juntos sig-  tema era o que esperar do século 21 e o
                     nifica que temos de indagar se existe uma  novo milênio. Sugeri então: por que, em
                     memória coletiva unificada, indiferenciada  vez de cahiers de doléances, não escreve-
                     ou se essa memória coletiva é formada de  mos cahiers d’espérance? Isto é, quais são
                     fragmentos de memória, e, nesse caso, até  as razões credíveis, não fantasias, que nos
                     que ponto os fragmentos de memória con-  levam a crer que o terceiro milênio será
                     vergem como peças de mosaico para for-   melhor que o segundo ou o primeiro?   
                     mar algum desenho com sentido.             A primeira resposta foi a de Michel
                       É possível dizer que exista uma memória  Camdessus, que me pareceu notável: “A
                     unificada brasileira sem levar em conta a  razão de acreditar que o terceiro milênio
                     memória nos negros, a memória dos povos  vai ser melhor é a emancipação da mulher.



       FEVEREIRO  2022                          REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA                                    21
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