Page 19 - Revista Política Democrática Online nº 40 - Fevereiroo/2022
P. 19
RUBENS RICUPERO - ENTREVISTA ESPECIAL
“ Foto: Reprodução/Youtube
TEMOS 200 ANOS DE HISTÓRIA
COM MUITA COISA ADMIRÁVEL
REALIZADA, QUE NÃO SE DEVE
IGNORAR, DANDO ÊNFASE exposição que foi feita no aterro, depois da
“ e sim por esses esforços de refundação.
demolição do Morro do Castelo – note-se,
APENAS AO QUE FALTA deixando sem moradia milhares pessoas po-
bres. Vale não pelos acontecimentos festivos
RPD: Podemos supor que a celebra-
ção agora poderá voltar-se mais para
estudos históricos de nossos primeiros
estrangeiros, ocupava posição de destaque 200 anos independentes?
entre as economias do mundo e os maiores
exportadores. RR: Espero que sim, embora já se tenha
O Brasil nunca viveu situação semelhante. feito muito a respeito. Na elaboração do
O primeiro centenário brasileiro não foi um meu artigo sobre o bicentenário, me inspi-
momento de euforia. Em 1922, o Brasil fizera rei na obra monumental de Pierre Nora “Os
um balanço de seu passado, sobretudo dos Lugares da Memória”. Num trecho do
35 anos da república, e tinha encontrado um livro, o autor afirma que vivemos hoje uma
déficit monumental. Houve até um esforço situação curiosa, uma espécie de tensão
da geração nascida com a República, que não dialética. De um lado, uma multiplicação
conhecera a monarquia, a levar avante o que, dos aniversários a comemorar, uma espécie
na época, chamavam de inquérito, uma con- de mania de comemorações. A França
sulta a intelectuais. Vicente Licínio Cardoso, chegou até a criar uma repartição pública
organizador do inquérito, publicou o livro À para a coordenação das comemorações
margem da história da República, que con- nacionais. E, do outro lado, uma contestação
tinha artigos de Oliveira Viana, Alceu Amo- cada vez mais dura às comemorações, cuja
roso Lima, Gilberto Amado, de alguns dos expressão mais recente é a destruição de
principais intelectuais de então. Foi um livro monumentos e estátuas. No caso brasileiro,
de consciência crítica sobre a república, reve- tenho a impressão de que a prioridade não
lando realizações muito aquém do esperado. seja tanto de promover grandes estudos
Os acontecimentos que marcaram o pri- históricos. É claro que sempre há espaço
meiro centenário nem sempre estavam ex- para dizer coisas novas, mas, se tivermos
plicitamente ligados ao centenário, mas ex- de escolher, eu escolheria me concentrar
primiam o desejo de uma reconstrução de em uma visão de futuro. Já tivemos na
alguma forma inspirada pelo centenário. A USP trabalhos admiráveis sobre o período
Semana de Arte Moderna teve essa intenção da formação do Estado. O professor István
de modernizar a cultura e a percepção do Bra- Jancsó, que morreu em 2010, coordenou
sil, de redescobrir a vida e a cultura do povo. um projeto temático que se chamava “Bra-
Tratava-se, pois, de uma inspiração ligada em sil, a formação do Estado e da Nação”,
sentido amplo ao centenário. Na mesma li- uma obra enorme com 20 e poucos pes-
nha, situou-se a fundação em Niterói do Par- quisadores de mais de dez universidades.
tido Comunista do Brasil e, quase ao mesmo Como já existem também vários trabalhos
tempo, a do Centro Dom Vital por Jackson de recentes sobre José Bonifácio, concluí que
Figueiredo, renovação do pensamento católi- não deveríamos nos propor a refazer esses
co. O movimento tenentista de cinco de julho trabalhos, como ocorreu no centenário,
também visa justamente a mudança do sis- por exemplo, com a publicação dos Anais
tema político-eleitoral. O ano do centenário da Independência, de toda a documenta-
no caso brasileiro vale não tanto pela grande ção sobre o reconhecimento, tudo isso é
FEVEREIRO 2022 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 19
