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22   ESCULTURA DE ZADKINE - IVAN ALVES                                        REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA





        Escultura de Zadkine




        Obras do escultor russo Ossip Zadkine são uma forma originalíssima de

        intervir no mundo, liberando a escultura do peso do espaço, da opressão das
        formas compactas



                  SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR: IVAN ALVES                          WWW.FUNDACAOASTROJILDO.COM.BR


          Os índios parecis, que vivem no Mato   aprimorado, modificado pouco a pou-  reside, por sua vez, a riqueza de toda e
        Grosso, têm uma lenda que narra como   co pela destreza do artista. Era muito  qualquer escultura.
        o homem e a mulher nasceram de uma   mais do que isso. Na verdade, a escul-  Aqui, uma rápida observação. Tive
        escultura  feita em  um  fragmento  de   tura de Ossip Zadkine vai muito além:  outra experiência extraordinária com a
        madeira por Enorê, a divindade suprema   permite  que  nosso  olhar  atravesse  o  escultura durante visita que fiz ao acer-
        da tribo. Enorê tocou, com uma varinha,   bloco compacto. Como? É simples.  vo de arte dita primitiva do Museu do
        cada uma das esculturas, surgindo então   O bloco, que antes retinha, parava,  Louvre, em companhia de Violeta Tro-
        Zaluiê, o primeiro homem, e Kamáikorê,   domava nosso olhar, agora o deixava  voada Aguiar, querida amiga do peque-
        a primeira mulher. No princípio, pelo vis-  livre. Zadkine foi, provavelmente, o pri-  nino São Tomé e Príncipe. De tudo de
        to, era a escultura.                meiro a liberar a escultura do peso do  belo que vi ali, fiquei particularmente
          Mas o que é, exatamente, uma escul-  espaço, da opressão das formas com-  impressionado com uma escultura em
        tura? Um espaço em três dimensões?   pactas, apresentando-nos uma obra  bronze de Ogun, originária do antigo
        Certamente.  O  trabalho  que o  artista   vazada. Suas esculturas são  abertas,  Daomé, atual Benin. Como o homem é
        executa  sobre  um  bloco  de  madeira,   nosso olhar as atravessa. Aqui, esta-  capaz de criar beleza! Talvez essa seja
        mármore ou bronze, dando-lhe forma e   mos em pleno domínio da liberdade  a única capacidade inesgotável nele,
        volume em um espaço concreto? Tam-  de olhar, do olhar. O homem, além de  junto com a adaptação ao meio circun-
        bém. Uma representação poética? Não   ser a natureza pensando, é, também, a  dante. Impossível não se emocionar
        há como negar tampouco. A escultu-  natureza sentindo. Estranha a relação  com a arte que vem da África, a for-
        ra é tudo isso ao mesmo tempo. E, se   do artista com sua obra. Eu me recor-  ça de suas formas, a pureza que delas
        depender de Ossip Zadkine, escultor de   do de ter visto, certa vez, uma imagem  emana. De uma África que é a mãe
        origem russa que emigrou para a Fran-  de Alberto Giacometti diante de uma  da Humanidade, nunca podemos nos
        ça no início do século XX, a escultura   escultura sua. Ossudos os dois. Magér-  esquecer disso. Rei da Guerra singula-
        é ainda uma forma originalíssima de   rimos ambos. Foi quando entendi que  ríssimo, divindade imponente, Ogun é,
        intervir no mundo.                  a obra criara o artista.            ao mesmo tempo, Rei da Paz. Na escul-
          Vi pela primeira vez uma exposi-                                      tura que pude apreciar, Ogun aparece
        ção das obras de Zadkine no Museu   Rodin                               manipulando  tanto  a  pesada  espada
        de Arte Moderna de Paris, em 1972,                                      como  um  pequeno  sino,  com  o qual
        apenas oito anos após a morte do      Em Zadkine, como em Rodin, há o  anunciava,  na verdade,  sua  intenção
        artista. Estava em companhia de uma   predomínio do estilo clássico, naquilo  de paz. Interessante isso. Pois Ogun
        querida amiga brasileira, formada em   que ele tem de harmonioso, com uma  parecia saber mais do que ninguém da
        filosofia da arte, e aprendi muito nes-  extraordinária noção de movimento,  dupla natureza dos homens.
        sa ocasião. Na verdade, o encontro   que justamente desarrumava as super-  Seja como for, se Oscar Niemeyer libe-
        com a obra de Zadkine foi para mim   fícies das imagens e nossas próprias  rou, com o recurso ao pilotis, o prédio
        um verdadeiro choque estético. Senti   emoções. Na tensão existente entre  do chão, Ossip Zadkine, por seu turno,
        uma diferença em relação ao trabalho   perfeição e ritmo, talvez resida a força  liberou a massa esculpida do espaço,
        dos demais escultores que não sou-  de atração ou o impacto de sua arte.  criando uma escultura com asas. Como
        be  definir  de imediato.  Com  Zadkine   Contrariamente à música, que parte do  uma fotografia contrastada de Cartier-
        aprendi que a escultura não se limitava   abstrato para o concreto, a escultura vai  -Bresson ou um quadro de Georges de
        a compor apenas um bloco lapidado,   do concreto ao abstrato. E nisso talvez  la Tour, sua escultura é vazada de luz.
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