Page 23 - Política Democrática
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REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA                    JOSÉ AUGUSTO LINDGREN - OS DIREITOS HUMANOS NA NÉVOA  21




          Num momento em que velhos con-
        ceitos perderam a semântica, e delírios
        se ostentam programáticos, os direitos
        humanos parecem haver sofrido muta-                                                                        Foto:Wilson Dias / agencia brasil
        ção espantosa: de receita normativa
        democrática a instrumento de inimigos
        solertes. Ignorados por lideranças popu-
        listas de fora, encontram-se, no Brasil,
        no início de 2019, num limbo perigoso.
        Daí a conveniência de lembrar que nada
        de intrínseco impede que a Declaração
        Universal dos Direitos Humanos volte a
        ser a guia de ação que já foi.
          Encomendada pelas Nações Unidas    A ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves , é pastora, funcionária e mãe adotiva de menina indígena
        em 1947 e elaborada por comissão pre-
        sidida por viúva de ex-Presidente  dos   atingia todo o globo, sobrepujando os  incontida é contraproducente. Con-
        Estados Unidos, a Declaração Universal   Estados no controle de suas riquezas, a  forme podia ver de maneira trágica nos
        dos Direitos Humanos foi negociada   Declaração começou a perder vigor.   Bálcãs, a obsessão – repito, obsessão
        pela Assembleia Geral e proclamada em   Diante das disparidades agravadas, das  – com identidades raciais ou étnicas,
        10 de dezembro de 1948. Na votação,   levas de migrantes foragidos de guerras e  religiosas, linguísticas, e com diferen-
        somente se abstiveram oito Estados: a   miséria, da ampliação sem limites do con-  ças de gênero, é “de direita”, não “de
        África  do Sul, segregacionista, a Ará-  ceito, os direitos humanos foram-se tor-  esquerda”. Tal como a imposição de ati-
        bia Saudita, muçulmana, e os países do   nando objeto de descrédito. Aos olhos de  tudes “politicamente corretas”, chamar
        então bloco comunista. Todos os demais   pessoas acossadas pela insegurança crimi-  tudo de “direitos” descredencia os direi-
        quarenta e oito participantes votaram a   nal e econômica, adquiriam feição inopor-  tos humanos como categoria superior
        favor. Os direitos nela consagrados são   tuna, de proteção descabida para marginais  político-jurídica.Desde a eleição, o atual
        aqueles considerados essenciais à sobre-  e bandidos, de ameaça às prioridades do  presidente brasileiro declara-se favorável
        vivência digna de qualquer ser humano,   conjunto. Para isso contribuíram diversos  aos direitos humanos “sem viés”. Em
        sem discriminações. Começando pelos   fatores. Apropriados por meios de comu-  atenção ao eleitorado feminino, decidiu
        direitos à vida, à liberdade e à seguran-  nicação que ainda insistem, por moda, em  manter um ministério simbólico, para
        ça, abrangem, entre outros, a proibição   panfletos provocantes da contracultura, e  a família, a mulher e os direitos huma-
        da escravidão, da tortura e da detenção   por militantes que postulam reivindicações  nos,  nomeando  uma  pastora  evangéli-
        arbitrária, os direitos a julgamento justo   ditas “progressistas”, os direitos específicos  ca. Podem-se criticar as intenções. Mas
        com presunção de inocência, às liber-  de minorias, cobrados como “politicamen-  as recordações de infância da pastora,
        dades de religião e de expressão, assim   te corretos”, soam elitistas. Irritam a cida-  funcionária e mãe adotiva de menina
        como ao atendimento de necessidades   dania comum, que a contragosto os aceita.  indígena, e suas declarações ingênuas
        sociais como educação, trabalho remu-  Ofendem facções fundamentalistas, expan-  de Ministra, são tranquilizadoras. Não
        nerado, descanso, saúde e previdência.   didas por todo o mundo, quando contrá-  oferecem aberturas, mas procuram acal-
          Conquanto criticada como “ociden-  rios a dogmas e tradições redivivas.  mar temores, inclusive de homossexuais.
        tal” e imperialista, porque adotada num   Com mais de trinta anos na área de  A ministra saberá que, na categoria de
        período em que grande parte da huma-  direitos humanos da ONU, venho, há  cláusula pétrea da Constituição, assim
        nidade ainda vivia em colônias, a Decla-  pelo menos quinze, protestando jun-  como na acepção universalista de 1948,
        ração foi logo valorizada em escala   to à militância contra “os vieses” na  os direitos humanos não têm parcialida-
        planetária, tendo servido de inspiração   matéria. Fazia-o, por conta própria,  de. Suas prescrições atendem a todos,
        para movimentos variados, de desco-  por ressentir exageros e observar os  como o cristianismo pregado por Jesus.
        lonização e em oposição a ditaduras.   efeitos colaterais  que eles  tinham.  O melhor caminho “sem viés”, ora na
        Terminada a Guerra Fria, tornou-se, por   Muito antes das eleições brasileiras de  névoa, pode ter como baliza a Decla-
        consenso da Conferência  de Viena de   2018, eu assinalava no CERD, comitê  ração Universal. Seu enfoque minima-
        1993, medida de avaliação da legitimi-  de tratado, em Genebra, que a ques-  lista equilibrado há de ser bom para o
        dade dos governos, gozando de ampla   tão das minorias é importante, mas  Brasil, para a ONU e para o conceito,
        popularidade.  Na virada do milênio,   não pode desconsiderar o conjunto;  que abrange também as minorias. Foi
        contudo, uma guinada ocorreu. Precisa-  que  postular  direitos  especiais  para  com ele que a Declaração de 1948, em
        mente quando a globalização capitalista   “diferentes” em situação de violência  dezembro, completou 70 anos.
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