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REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA                                           CLEOMAR ALMEIDA - REPORTAGEM   21




          Em Brasília, crianças e adolescentes   ter o equilíbrio entre a lei da oferta e   – Aqui, no DF, a situação é um pouco
        dormem até em becos ou mocós – os   da procura, considerando o número de  pior, porque muita gente vem para cá
        esconderijos onde dormem – zonas de   pessoas que movimentam a economia  achando que vai conseguir emprego,
        intenso tráfico de drogas. O acesso a   marginalizada.                  mas o governo não tem equipes sufi-
        esses locais é controlado por eles pró-  – Para cá só pode vir gente de con-  cientes para nos atender. Estou vivendo
        prios. A dependência química, porém,   fiança, porque o cliente deixa o carro e  nas ruas de Brasília desde o começo do
        não é regra entre todos. Grande parte   a chave no início da manhã e só volta  ano. Não tenho para onde ir, lamenta
        das pessoas em situação de rua passa o   para buscar o veículo no final do dia.  Márcio Vinícius.
        dia trabalhando. Cobra, em média, R$   Por mais que muita gente pense que   As discussões com a família por desa-
        20 reais para lavar um veículo nos esta-  podemos roubar, existem muitas pesso-  vença religiosa levaram Márcio Vinícius
        cionamentos de prédios públicos para   as que confiam em nosso trabalho, diz  a sair de sua cidade natal. Passou por
        conseguir uma renda num país em que   Antônio Oliveira (28).            Goiânia, de onde seguiu para a capital
        existem quase 13 milhões de desem-                                      do país. Longe da filha (18), dos pais e
        pregados, segundo o Instituto Brasilei-                                 das duas irmãs, ele procura ajuda para
        ro de Geografia e Estatística (IBGE).  “A VIGILÂNCIA                    prosseguir e não se tornar “um caso
          –  Aqui tem muito doutor de gra-    SOCIOASSISTENCIAL DEVERIA         de  vergonha”,  como  afirma,  peran-
        vata que ajuda, mas tem muita gente   VIR ACOMPANHADA DE                te os parentes. Com um papelão, ele
                                              UM MAIOR ESFORÇO DE
        comum também. Nem sempre recebo       INCORPORAÇÃO DESTE GRUPO          improvisa um canto para dormir, todas
        o valor que peço. Na maioria das vezes,   NO CADASTRO ÚNICO PARA        as noites, em uma calçada perto de um
        só ganho umas moedas mesmo, diz       PROGRAMAS SOCIAIS, DE             centro  comercial  e  de  entretenimento
        Roberto de Souza (37 anos).           FORMA QUE SE AMPLIASSE            no Plano Piloto.
          A mulher dele, Maria Lúcia de Sou-  O ACESSO DA POPULAÇÃO               Professora da Universidade de Brasí-
        za (35), e os dois filhos do casal, um   EM SITUAÇÃO DE RUA ÀS          lia (UnB), a socióloga Maria Salete Kern
        de 9 e outro de 7 anos de idade, ven-  POLÍTICAS PÚBLICAS.”             Machado, que coordenou a única pes-
        dem balas de goma e amendoim no                                         quisa sobre pessoas em situação de rua
        semáforo. Poucos segundos antes de    MARCO ANTONIO CARVALHO            no DF, afirma que a falta de atendimen-
        o sinal ficar verde, correm para reco-  ESPECIALISTA EM POLÍTICAS PÚBLICAS E GESTÃO   to social eficaz é um problema que ain-
                                              GOVERNAMENTAL E AUTOR DO ESTUDO DO IPEA
        lher o dinheiro ou os produtos emba-                                    da persiste nos dias de hoje. Para ela, o
        lados em pequenos sacos plásticos que                                   descaso do poder público só aumenta
        dependuram nos retrovisores dos car-  Ele afirma que “diversos grupos de   a situação de vulnerabilidade de quem
        ros. O homem e a mulher dizem que  rua” já o acolheram desde que saiu de   vive nos espaços públicos.
        trabalhavam antes como vendedores  casa em novembro do ano passado,       – Os abrigos são inseguros, e muitos
        em Ceilândia, onde nasceram, a 22  quando se separou da mulher (26) e   indivíduos acolhidos sofrem violência,
        quilômetros de Brasília.            saiu do barracão onde morava no fundo   abusos e maus-tratos dentro deles. A
          –  Perdemos o emprego na mesma  da residência da família dela. Com rela-  questão de quem vive em situação de
        época, há dois anos. Ver nossos filhos  ção totalmente rompida com seus fami-  rua é estrutural da sociedade. Deveria
        chorando de fome doía na alma. Não  liares, moradores de Brasília, ele, que   haver locais que abrigassem, de forma
        recebemos bolsa aluguel, e o dinheiro  já trabalhou como serralheiro, diz que   mais convidativa, essas pessoas, sugere
        que sobra é para comprar mercadoria  ficou em um abrigo durante um mês na   Maria Salete.
        e comida, por isso a rua é nossa única  capital federal, mas, conforme diz, não   O coordenador do Movimento
        alternativa. A gente não tem conforto,  se adequou por ter “muita gente dife-  Nacional de Meninos e Meninas de
        mas não passa fome. À noite, se estiver  rente” em um mesmo quarto.     Rua (MNMMR), o psicólogo e educador
        muito frio, levantamos nossa barraca   Na população em situação de rua,   social Eduardo Mota, diz que o aumen-
        com lençol, afirma Maria Lúcia.     há também aqueles que ocupam o dia   to do desemprego no país deve exigir
          Perto do Palácio do Buriti, outros  catando papelão para revenda. É o caso   do poder público muito mais investi-
        homens em situação de rua se organi-  do ex-auxiliar de serviços gerais Márcio   mento em políticas de acolhimento, já
        zam em uma fila que eles próprios con-  Vinícius Peixoto (37). Ele conta que, na   que, ressalta, esse problema aumenta a
        trolam para atuarem no lava jato criado  adolescência, seu sonho era ser policial   chance de pessoas desempregadas irem
        há  anos  no  estacionamento  público.  federal. Concluiu o ensino médio, mas   para as ruas.
        Cada um tem a sua vez de assumir a  não entrou na faculdade. Foi morar na
        mangueira de água. Gente nova só tem  rua após perder o emprego em Belém,
        chance de entrar no grupo se for indi-  onde nasceu. Mudou-se para Brasília   ASSISTA ÀS ENTREVISTAS
        cada por um veterano. Tudo para man-  em janeiro deste ano.
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