Page 34 - Política Democrática
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32 ENSAIO - JOSÉ CARLOS MONTEIRO REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA JOSÉ CARLOS MONTEIRO - ENSAIO 33
episódios da produção é, stricto sensu, justifica como estratégia inevitável em nova. Trótski tinha dificuldade em admi-
mais um “Príncipe das Trevas”, um diri- determinadas condições, ou seja, quan- tir erros. Filho ingrato, marido relapso,
gente intrinsecamente perverso contes- do a transformação revolucionária exige pai omisso, amigo desleal, conspirador Foto: Netflix/Reprodução
tando tudo e ousando o que der e vier a submissão de milhares de pessoas a compulsivo e temperamento impulsivo –
para chegar ao poder. Opersonagem- um único indivíduo. Desde o começo da tal é o retrato do “profeta armado” em
-título é descrito como um dândi opor- Revolução de 1917, o papel de Trótski sua representação na minissérie. Difícil
tunista, e o movimento revolucionário, foi, decerto, determinante. Ele é mos- imaginá-lo também como um ídolo pop
uma armação operada por homens de trado nos debates sobre a derrubada como pretendia o produtor Konstantin
negócio. Além da suposta proximidade do czarismo, no front da Guerra Civil, Ernst. Em algumas passagens, porém, o
promíscua com uma burguesia exilada nas disputas internas do partido e em figurino de Trótski recorda o de um artis-
com “características mafiosas”, o seria- intrincadas negociações com autorida- ta do showbizz.
do coloca Trótski em situações constran- des estrangeiras sobre o fim da guerra e Mesmo concordando com o filóso-
gedoras. Trata-se de uma extrapolação o preço a pagar pela paz. Omite-se sua fo Theodor Adorno quando defende o
abusiva, por exemplo, descrever assim relação com trabalhadores. Seja como “potencial emancipador da desmistifi-
figuras da intelligentsiarussa como, entre for, Trótski se torna uma referência cação radical” de uma personalidade
outros, Gheorgi Plekhanov, Alexander essencial do processo revolucionário, autoritária, não é possível perceber na
Parvus e o próprio Lênin. Trótski não é deixando na sombra Vladimir Lênin e minissérie qualquer inclinação nesse sen-
descrito como um intelectual, um gênio sendo observado com suspeita pelo seu tido. Explica-se: o propósito do seriado Para vender Trótski como superstar, os produtores se lançaram numa megaoperação que no estágio inicial abarcava o espectro político-ideológico e estético
militar, um talentoso orador, mas, ao rival e futuro algoz, Josef Stalin. Opres- não é desmistificar, masconfundir e atur-
contrário, como um autoritário, machis- tígio histórico de uma figura política dir sempre mais. A teoria marxista faz
ta, psicopata, arrogante e perverso. dotada de tal autoridade pode implicar uma crítica radical das mistificações cul- delas, se era devasso ou manipulador. todo cometendo toda sorte de “vilezas” neuróticos e lunáticos, desempenharam
É uma tarefa complicada, desafia- evidentemente o perigo de um culto. tuais concernente o papel do indivíduo Ocorre que a mistificação não consiste em nome da “liberdade, igualdade, fra- grandes papéis em todas as épocas da
dora biografar uma personagem tão Esse perigo se evidencia na audácia com na história, porém sem negar o papel na omissão de fatos inessenciais, porém ternidade” de sua revolução. história da humanidade”. [9]
complexa como Trótski, revestida das que Trótski recusa se submeter ao cole- do “grande homem”, às vezes deter- no excesso de extrapolações abusivas, Ao analisar a problemática da bio-
características da autoridade carismá- tivo e contesta a autoridade de Lênin minante nesse ou naquele momento do fraudulentas e inadmissíveis – como Freud explica grafia, em sua conexão com a psicolo-
[10]
tica analisadas por Max Weber e que como líder máximo do partido. E até de processo. Os problemas de caráter de nas cenas caluniosas de Larissa Reissner, gia, Martha Harnecker assinala que
são reconhecidas no herói guerreiro, líder da revolução: vide a intensa articu- Trótski, seus defeitos, são amplificados acompanhante de Trótski em várias fren- Com petulante nonchalance, os dire- para conhecer uma pessoa é necessá-
no herói de rua e no demagogo. Sem lação de Trótski para deflagrar a toma- em função do objetivo desmitificador da tes de luta. Sem qualquer pudor, o seria- tores e os roteiristas imaginaram um rio conhecer a estrutura fundamental
[7]
dúvida – analisa Weber – “a autoridade da do poder sem acertar com ninguém. série, que não se circunscreve à denún- do a mostra seduzindo Trótski no trem improvável encontro histórico entre Trót- de sua personalidade. Freud elaborou
carismática é uma das grandes forças Mas, num recuo estratégico, ele termina cia da atrofia do poder, que persiste até do Exército Vermelho. ski e o “pai” da psicanálise, Sigmund o conceito que permite conhecer esta
revolucionárias da História, porém em por atribuir a Lênin o planejamento da no Estado socialista (inclusive na Rússia Criticar as ilusões próprias do culto da Freud. Ao fazer em Viena uma confe- estrutura fundamental: o conceito de
sua forma totalmente pura tem caráter derrubada do Czar Nicolau II. Trata-se, capitalista de Putin). O mais estranho, no personalidade histórica, segundo Michel rência sobre sonhos, sexo e revolução, inconsciente e suas diferentes fases de
eminentemente autoritário e domina- de fato, de um recuo estratégico: Lênin caso de Trótski e igualmente (ou muito Verret, implica reduzir “o papel dirigen- Freud é confrontado sarcasticamente por desenvolvimento. A significação profun-
dor”. Em18 Brumário de Louis Bonapar- o advertira que os russos não admitiriam mais) de Stálin, é que o coletivo – ao te dos indivíduos às suas importantes, Trótski. Desconcertado com as ironias do da dos fatos da biografia somente seria
te, Marx designaria como bonapartismo um judeu como dirigente do país. nível do Partido, do Estado e das massas mas justas proporções.” Não é este o espectador russo, o psicanalista tenta se inteligível a partir de sua situação dentro
essa forma clássica de poder personali- – tenha consentido na expressão social caso, aqui. Inexiste qualquer senso de recompor e interpela Trótski mais tarde. de uma fase determinada do desenvol-
zado (p.105). A futura mulher de Tróski, Desmitificação radical desses defeitos. medida – nem de perspectiva dialética. Com uma observação fulminante, Freud vimento psíquico, dos acontecimentos
Natalia Sedova, alude a esse bonapartis- Da trajetória de Trótski, dos primórdios Eximindo-se de precisão histórica (é uma diz ao futuro líder revolucionário que ele que se realizam nessa vida pessoal. Neste
mo ao ouvi-lo contar suas pretensões de A despeito de sua atuação intensa em até sua execução por Ramon Mercader ficção), os realizadores da minissérie lhe parecia um “tipo raro” de agressor sentido, seguindo o raciocínio de Harne-
liderar o movimento comunista. Trótski várias frentes, Trótski não era o homem no México, em 1940, são conhecidos entregam-se a uma cínica retórica contra sexual: “Só vi esse olhar em dois tipos cker, analisemos de que maneira trans-
se assume como representante das clas- providencial, o salvador supremo ou o inúmeros aspectos notórios: a eloquên- Trótski e a revolução. Sem eufemismos, de pessoas: serial killerse fanáticos reli- parece na trajetória de Trótski a pulsão
ses sem comunidade nem organização condutor da revolução – nem do povo cia e a valentia, a sagacidade intelectual a execução artística segue a ideologia giosos”. O que teria levado Freud a tal de morte, descrita por Freud em sua
política (ou seja, dos camponeses, do russo. No próprio partido, havia des- e a crueldade. Tudo isso transparece na (putiniana). O Trótski da minissérie não diagnóstico devastador? Talvez o psica- teoria da agressão inata do ser humano.
operariado e até da pequena burguesia confiança entre os dirigentes sobre sua maioria dos episódios da minissérie, que reflete a exasperação das lutas pelo nalista tivesse visto em Trótski, por trás A pulsão de morte aparece várias vezes,
tradicional). Investindo-se de autoridade teoria e sua prática. Por mais notável se propõe ao mesmo tempo mitificá-lo e poder nem o terror da revolução. Na de sua eloquência, uma personalidade metaforicamente, na narrativa do seria-
superior, no mais claro estilo jacobino, que fosse, enquanto teórico e agitador, desmoralizá-lo – e com ele a revolução. obsessiva intenção de “desconstruir” o narcisista perturbada por conflitos psí- do – e quase como um leit motivela se
Trótski se arroga o poder de proteger os ele não conseguia dissimular sua ambi- Ou seja, narrar a história do homem, res- líder revolucionário, não há espaço para quicos – um megalômano acometido de evidencia em passagens significativas
desclassificados contra as outras classes ção de ser o “guia genial” da nação saltar suas qualidades, para em seguida a nobreza, o trágico, senso do destino fanatismo patológico para cumprir sua da vida de Trótski. Grosseiramente, os
e devolver-lhes a dignidade. – epíteto de que Stálin se apropria. Os dissecar suas fraquezas humanas e políti- apesar do palavrório despachado pelos missão política. Em uma linha conver- realizadores entrelaçam personagens e
Em reflexões incisivas sobre o defeitos flagrantes de sua personalidade cas. Mostrar sua escolha ética entre vida roteiristas Oleg Malovichko, Ruslan Gale- gente, Freud já observara em seu estudo situações traumáticas com o id, o ego
culto da personalidade na ex-URSS, o colidiam com os aspectos positivos de e missão. Para a instituição da mitologia ev e Pavel Tetersky para ilustrar o “mes- psicológico do presidente norte-america- e o superego de Trótski. Os roteiristas
teórico francês Michel Verret argu- uma atividade indiscutivelmente volta- trotskista, é irrelevante saber se o revo- sianismo” do “herói” quanto à salvação no Thomas Woodrow Wilson que “lou- vão buscar na estrutura fundamental
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menta que apersonalização do poder se da para a construção de uma sociedade lucionário tinha amantes ou se gostava da Rússia. Assim, Trótski passa o tempo cos, visionários, vítimas de alucinações, da personalidade de Trótski explicação