Page 35 - Política Democrática
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 episódios da produção é, stricto sensu,  justifica como estratégia inevitável em  nova. Trótski tinha dificuldade em admi-
 mais um “Príncipe das Trevas”, um diri-  determinadas condições, ou seja, quan-  tir erros. Filho ingrato, marido relapso,
 gente intrinsecamente perverso contes-  do a transformação revolucionária exige  pai omisso, amigo desleal, conspirador   Foto: Netflix/Reprodução
 tando tudo e ousando o que der e vier  a submissão de milhares de pessoas a  compulsivo e temperamento impulsivo –
 para  chegar  ao  poder.  Opersonagem-  um único indivíduo. Desde o começo da  tal é o retrato do “profeta armado” em
 -título é descrito como um dândi opor-  Revolução de 1917, o papel de Trótski  sua representação na minissérie. Difícil
 tunista, e o movimento revolucionário,  foi, decerto, determinante. Ele é mos-  imaginá-lo também como um ídolo pop
 uma armação operada por homens de  trado nos debates sobre a derrubada  como pretendia o produtor Konstantin
 negócio. Além da suposta proximidade  do czarismo, no front da Guerra Civil,  Ernst. Em algumas passagens, porém, o
 promíscua  com  uma  burguesia  exilada  nas disputas internas do partido e em  figurino de Trótski recorda o de um artis-
 com “características mafiosas”, o seria-  intrincadas negociações com autorida-  ta do showbizz.
 do coloca Trótski em situações constran-  des estrangeiras sobre o fim da guerra e   Mesmo concordando com o filóso-
 gedoras.  Trata-se  de  uma  extrapolação  o preço a pagar pela paz. Omite-se sua  fo Theodor Adorno quando defende o
 abusiva,  por  exemplo,  descrever  assim  relação  com  trabalhadores.  Seja  como  “potencial emancipador da desmistifi-
 figuras da intelligentsiarussa como, entre  for,  Trótski se torna uma  referência  cação radical” de uma personalidade
 outros, Gheorgi Plekhanov, Alexander  essencial do processo revolucionário,  autoritária, não  é possível perceber na
 Parvus e o próprio Lênin. Trótski não é  deixando na sombra Vladimir Lênin e  minissérie qualquer inclinação nesse sen-
 descrito como um intelectual, um gênio  sendo observado com suspeita pelo seu  tido. Explica-se: o propósito do seriado   Para vender Trótski como superstar, os produtores se lançaram numa megaoperação que no estágio inicial abarcava o espectro político-ideológico e estético
 militar, um talentoso orador, mas, ao  rival e futuro algoz, Josef Stalin. Opres-  não é desmistificar, masconfundir e atur-
 contrário, como um autoritário, machis-  tígio histórico de uma figura política  dir sempre mais.  A teoria marxista faz
 ta, psicopata, arrogante e perverso.   dotada de tal autoridade pode implicar  uma crítica radical das mistificações cul-  delas, se era devasso ou manipulador.  todo cometendo toda sorte de “vilezas”  neuróticos e lunáticos, desempenharam
 É uma tarefa complicada, desafia-  evidentemente o perigo de um culto.  tuais concernente o papel do indivíduo   Ocorre que a mistificação não consiste  em nome da “liberdade, igualdade, fra-  grandes papéis em todas as épocas da
 dora biografar uma personagem tão  Esse perigo se evidencia na audácia com  na  história,  porém  sem  negar  o  papel   na omissão de fatos inessenciais, porém  ternidade” de sua revolução.  história da humanidade”. [9]
 complexa  como  Trótski,  revestida  das  que Trótski recusa se submeter ao cole-  do “grande homem”, às vezes deter-  no  excesso  de  extrapolações  abusivas,   Ao analisar a problemática da bio-
 características da autoridade carismá-  tivo e contesta a autoridade de Lênin  minante nesse ou naquele momento do   fraudulentas e inadmissíveis – como  Freud explica  grafia, em sua conexão com a psicolo-
                                                                                                    [10]
 tica analisadas por Max Weber e que  como líder máximo do partido. E até de  processo.  Os problemas de caráter de   nas cenas caluniosas de Larissa Reissner,   gia, Martha Harnecker assinala que
 são reconhecidas no herói guerreiro,  líder da revolução: vide a intensa articu-  Trótski, seus defeitos, são amplificados   acompanhante de Trótski em várias fren-  Com petulante nonchalance, os dire-  para conhecer uma pessoa é necessá-
 no herói de rua e no demagogo. Sem  lação de Trótski para deflagrar a toma-  em função do objetivo desmitificador da   tes de luta. Sem qualquer pudor, o seria-  tores e os roteiristas imaginaram um  rio conhecer a estrutura fundamental
 [7]
 dúvida – analisa Weber – “a autoridade  da do poder sem acertar com ninguém.  série, que não se circunscreve à denún-  do a mostra seduzindo Trótski no trem  improvável encontro histórico entre Trót-  de sua personalidade. Freud elaborou
 carismática é uma das grandes forças  Mas, num recuo estratégico, ele termina  cia da atrofia do poder, que persiste até   do Exército Vermelho.    ski  e  o  “pai”  da  psicanálise,  Sigmund  o conceito que permite conhecer esta
 revolucionárias da História, porém em  por atribuir a Lênin o planejamento da  no Estado socialista (inclusive na Rússia   Criticar as ilusões próprias do culto da  Freud. Ao fazer em Viena uma confe-  estrutura  fundamental:  o  conceito  de
 sua forma totalmente pura tem caráter  derrubada do Czar Nicolau II. Trata-se,  capitalista de Putin). O mais estranho, no   personalidade histórica, segundo Michel  rência sobre sonhos, sexo e revolução,  inconsciente e suas diferentes fases de
 eminentemente autoritário e domina-  de fato, de um recuo estratégico: Lênin  caso de Trótski e igualmente (ou muito   Verret, implica reduzir “o papel dirigen-  Freud é confrontado sarcasticamente por  desenvolvimento. A significação profun-
 dor”. Em18 Brumário de Louis Bonapar-  o advertira que os russos não admitiriam  mais) de Stálin, é que o coletivo – ao   te dos indivíduos às suas importantes,  Trótski. Desconcertado com as ironias do  da dos fatos da biografia somente seria
 te, Marx designaria como bonapartismo  um judeu como dirigente do país.   nível do Partido, do Estado e das massas   mas justas proporções.” Não é este o  espectador russo, o psicanalista tenta se  inteligível a partir de sua situação dentro
 essa forma clássica de poder personali-  – tenha consentido na expressão social   caso, aqui. Inexiste qualquer senso de  recompor e interpela Trótski mais tarde.  de uma fase determinada do desenvol-
 zado (p.105). A futura mulher de Tróski,  Desmitificação radical  desses defeitos.   medida – nem de perspectiva dialética.  Com uma observação fulminante, Freud  vimento psíquico, dos acontecimentos
 Natalia Sedova, alude a esse bonapartis-  Da trajetória de Trótski, dos primórdios   Eximindo-se de precisão histórica (é uma  diz ao futuro líder revolucionário que ele  que se realizam nessa vida pessoal. Neste
 mo ao ouvi-lo contar suas pretensões de   A despeito de sua atuação intensa em  até sua execução por Ramon Mercader   ficção), os realizadores da minissérie  lhe parecia um “tipo raro” de agressor  sentido, seguindo o raciocínio de Harne-
 liderar o movimento comunista. Trótski  várias frentes, Trótski não era o homem  no México, em 1940, são conhecidos   entregam-se a uma cínica retórica contra  sexual: “Só vi esse olhar em dois tipos  cker, analisemos de que maneira trans-
 se assume como representante das clas-  providencial, o salvador supremo ou o  inúmeros aspectos notórios: a eloquên-  Trótski e a revolução. Sem eufemismos,  de pessoas: serial killerse fanáticos reli-  parece na trajetória de Trótski a pulsão
 ses  sem  comunidade  nem  organização  condutor da revolução – nem do povo  cia e a valentia, a sagacidade intelectual   a execução artística segue a ideologia  giosos”. O que teria levado Freud a tal  de  morte,  descrita  por  Freud  em  sua
 política (ou seja, dos camponeses, do  russo. No próprio partido, havia des-  e a crueldade. Tudo isso transparece na   (putiniana). O Trótski da minissérie não  diagnóstico devastador? Talvez o psica-  teoria da agressão inata do ser humano.
 operariado e até da pequena burguesia  confiança entre os dirigentes sobre sua  maioria dos episódios da minissérie, que   reflete a exasperação das lutas pelo  nalista tivesse visto em Trótski, por trás  A pulsão de morte aparece várias vezes,
 tradicional). Investindo-se de autoridade  teoria e sua prática. Por mais notável  se propõe ao mesmo tempo mitificá-lo e   poder  nem  o  terror  da  revolução.  Na  de sua eloquência, uma personalidade  metaforicamente, na narrativa do seria-
 superior, no mais claro estilo jacobino,  que fosse, enquanto teórico e agitador,  desmoralizá-lo – e com ele a revolução.   obsessiva intenção de “desconstruir” o  narcisista perturbada por conflitos psí-  do – e quase como um leit motivela se
 Trótski se arroga o poder de proteger os  ele não conseguia dissimular sua ambi-  Ou seja, narrar a história do homem, res-  líder revolucionário, não há espaço para  quicos – um megalômano acometido de  evidencia em passagens significativas
 desclassificados contra as outras classes  ção de ser o “guia genial” da nação  saltar suas qualidades, para em seguida   a nobreza, o trágico, senso do destino  fanatismo patológico para cumprir sua  da vida de  Trótski. Grosseiramente, os
 e devolver-lhes a dignidade.    – epíteto de que Stálin se apropria. Os  dissecar suas fraquezas humanas e políti-  apesar do palavrório despachado pelos  missão política. Em uma linha conver-  realizadores entrelaçam personagens e
        Em reflexões incisivas sobre o  defeitos flagrantes de sua personalidade  cas. Mostrar sua escolha ética entre vida   roteiristas Oleg Malovichko, Ruslan Gale-  gente, Freud já observara em seu estudo  situações traumáticas com o id, o ego
 culto da personalidade na ex-URSS, o  colidiam com os aspectos positivos de  e missão. Para a instituição da mitologia   ev e Pavel Tetersky para ilustrar o “mes-  psicológico do presidente norte-america-  e  o  superego  de  Trótski.  Os  roteiristas
 teórico francês Michel Verret argu-  uma atividade indiscutivelmente volta-  trotskista, é irrelevante saber se o revo-  sianismo” do “herói” quanto à salvação  no Thomas Woodrow Wilson que “lou-  vão buscar  na estrutura fundamental
 [8]
 menta que apersonalização do poder se  da para a construção de uma sociedade  lucionário tinha amantes ou se gostava   da Rússia. Assim, Trótski passa o tempo  cos, visionários, vítimas de alucinações,  da  personalidade  de  Trótski  explicação
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