Page 36 - Política Democrática
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para traumas ocultados e dissimulados é complexado e vingativo. Não parece simbólicas – uma figura que, não obstan- ram deliberadamente a intervenção de transcorrida há um século e cujo prota- [1]A biopic, segundo o historiador do cinema Robert
em suas atitudes. Essa “explicação” é um serial-killernem um fanático. Como o te, é também conceitual, pois encarna a grandes dirigentes da luta revolucionária. gonista foi Trótski, “o profeta armado”. Rosenstone, citando Roland Barthes, é “uma ficção
que não ousa dizer seu nome... (ela pega) vidas reais
proposta em flashbacksem que o prota- seriado é elusivo em relação a Mercader, vontade de poder, como uma espécie de Lênin é uma caricatura inacreditável, sem Por uma perversão, essa biopicacabou de pessoas e as transforma em esferas do mito.” Ver
gonista revê seus fantasmas existenciais: não ficamos sabendo que ele era filho super-homem negativo. vibração. Stálin, o arquirrival de Trótski, é por assumir a feição de um confronto Rosenstone, “In Praise of the Biopic”. In: Richard
Francaviglia e Jerry Rodnitzky (ed.), Lights, Camera,
o pai, a mulher, o marinheiro assecla e de uma comunista espanhola que com- No plano artístico, inegavelmente visualizado como uma sombra, um inimi- entre duas mentes alucinadas, Trótski e History. Portraying the Past in Film.Arlington: Texas A&M
até o próprio Freud. Nesse momento, batera na Guerra e que seria refém de os realizadores obtiveram síntese forte, go mortal surgido de um incidente trivial Mercader. Tudo o mais foi praticamente University Press, 2007. George F. Custen, estudioso
do assunto, sentencia sarcasticamente: “A biografia
a narrativa assume cisão freudiana, se agentes stalinistas. imaginária e conceitual. As imagens e (cf. a cena em que Trótski ignora a mão removido da cena histórica – como fazia hollywoodiana [biopic] está para a História assim como
fragmenta em polaridades esquizofrêni- os sons [matéria, forma, cor, cenários, estendida por Stálin para cumprimentá- Stalin quando de seu regime de terror. O o Caesar´s Palace [notório hotel cassino de Las Vegas]
está para a história arquitetônica: uma enorme, atraente
cas: erose thanatos. Estética da ambivalência figurinos] são determinados pela equa- -lo). Parece anedota: admirador rejeitado espectador é obrigado então a vivenciar distorção, que, depois de certo tempo, nos convence de
O seriado reproduz pensamentos, ção ideológico-política – a ideologia vira adversário implacável. o desfecho da narrativa na mais pura tra- seu próprio tipo de autenticidade.”
imagens e sentimentos de Tróstki em Em vista de seu propósito de evo- assumida pela produção. É, sem dúvida, Sem qualquer relevo, transitam em dição idealista. Ou, como escreveu Mer- [2]Vladislav Surkov. “Entenda a moderna governança
correntes contraditórias em que sua“- car uma página da história soviética, a a política que comanda a estética. Sem alguns episódios personalidades marcan- leau-Ponty, em As aventuras da dialética: russa. Putin e seu estado duradouro”. 14/2/2019.
Original russo traduzido para o inglês por Dmitry Orlov
consciência” parece desafiar sua versão minissérie necessariamente exibe algu- dualismo, a realização artística/cinema- tes da vida política e cultural russa dos “um filme não se pensa, ele se percebe”. e veiculado no Blog Vineyard of the Saker. Acessado em
da verdade e do espírito da revolução. ma expressividade no horizonte espeta- tográfica/televisiva valoriza a linha polí- primórdios do século XX até a eclosão E o que percebemos após os oito 14/2/2019.
Por sua vez, Ramon Mercader passa por cular. Em termos materiais, há evidente tica. O que, em substância, implicaria da Revolução: o escritor Máximo Górki, episódios magnificamente fotografados [3]A biografia de Dmitri Volkogonov, general do
semelhante transfiguração. Embora não capricho de produção na reconstituição ironicamente aquilo que queria Trótski o teórico marxista Gheorgi Plekhanov, o deTrótski? Um bem arquitetado espe- exército soviético, chefe do departamento de guerra
psicológica e diretor do Instituto Histórico Militar, parece
seja tomado por alucinações fantas- dos ambientes, nos figurinos, nos ade- em sua postulação da missão artística: financista socialista Alexander Parvus, a táculo de trompe l´oeil. Este modelo “insuspeita”, já que, como ex-stalinista, ele foi dos
[12]
magóricas, como Trótski, o misterioso reços. Na configuração narrativa, a “Uma política marxista e uma arte bur- mulher de Lênin, Nadezhda Krupskaya, o de confecção fílmica explora a ilusão primeiros a consultar os documentos secretos, escreveu
uma das mais bem documentadas biografias sobre
Frank Jacson (Ramon Mercader), quase forte presença do protagonista é valori- guesa”. pintor Diego Rivera, o líder do Governo e acredita que a verdade sobre Trót- Stalin (Stalin: Triunfo e Tragédia), Lênin (Lênin: uma nova
um encarnado alter ego do líder revo- zada pela intensa “encarnação” do ator Para compreensão do grande público Provisório Alexander Kerensky etc. Larissa ski transparecerá na representação ou biografia) e Trotsky (Trotsky: O Eterno Revolucionário).
lucionário, não dissimula seus aspectos Konstantin Khabensky. O personagem (russo ou estrangeiro), a narrativa é essen- Reisser ganha destaque apenas pela sua visualização do homem, do líder e do [4]Cf. Marcio Cury, “Recuperando a verdade sobre o
[13]
patológicos. O assassino é um comple- está em cena o tempo todo, envolven- cialmente linear, consoante a concepção nudez deslumbrante, no primeiro episó- momento histórico por meio do conhe- seriado ´Trotsky`exibido pela Netflix”. 21/12/2018.
Acesssado na Internet em 15/2/2019.
xado que queria entrar na História por te (mas não empático). Sua frieza e clássica (americana). Para condensar a dio. Não obstante, não há referência ao cimento sensível (as emoções dele e de [5]Tsekalo, em entrevista à Agence France Presse, em
[11]
reflexo . O seriado contrapõe dois deli- desenvoltura, sua habilidade ao inventar trajetória de Trótksi e da revolução, os exílio de Trótski. Antes de ser acolhido seu entorno) e não do conhecimento 23/10/2017: “Cem anos após revolução, Trotsky vira
rantes: de um lado, um Trótski isolado e tramar as ações de modo ousado, sua diretores recorrem a flashbacks, e usam e em 1936 pelo México, e ser protegido racional. O ilusionismo se sobrepõe à ‘herói’ de série de TV russa. Líder bolchevique que foi
morto a mando de Stalin aparece com ‘papel sangrento’”.
e enfraquecido, usado como “atração capacidade de assumir identidades pro- abusam da elipse, de cortes no tempo e por Rivera e Frida Kahlo, ele passou pelo análise. Basta satisfazer o observador
turística” pelo governo mexicano, um visórias e máscaras múltiplas criam uma no espaço. Mas essa profusão de elipses Cazaquistão e a Turquia, e viajou pela com lances de ação, violência e sexo. [6]Cf. Dwight Macdonald, in Politics Past. Essays in Political
Criticism. Nova York: Viking Press, 1970. P. 314
megalômano que quer deixar um rela- tensão que transforma o seriado num quase inviabiliza a reflexão. Na verdade, Europa. O seriado só assinala de passa- Aliás, raros filmes russos antigos ou [7]Max Weber. “Dominação carismática”. In: Sociologia.
to sobre sua filosofia da revolução; de espetáculo de sensações. A minissérie o seriado dispensa reflexão: tudo é tão gem o momento em que ele parte para recentes expõem com tanta franque- Organizador: Gabriel Cohn. 5ª ed. São Paulo: Ática,
outro, Jacson-Mercader, uma persona- desencadeia emoções (em sua maioria explícito, sem nuance ou sutileza que se o exílio com a mulher. Nem vemos qual- za as relações sexuais. Como diz Frida 1991. Página 128.
lidade igualmente obsessiva, um tipo puramente melodramáticas) a partir de torna inútil exigir alguma complexidade. quer menção à ressonância intelectual e Kahlo para Ramon Mercader: “Trotski [8]In: Théorie et Politique. Paris: Éditions Sociales, 1967.
perturbado que executa Trótski porque uma figura carregada de determinações Ao mesmo tempo, os realizadores igno- política dos escritos do líder revolucioná- transou com todo mundo. Ter sexo com [9]Sigmund Freud, “Thomas Woodrow Wilson: um
rio no contexto internacional. Sabemos, ele é como ingerir uma droga que vai estudo psicológico”, citado em Marcos Guiter, “Guerra e
liderança”. In: Guerra e morte. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
Foto: Netflix/Reprodução participou de um contrajulgamento de pletar a contrafacção, os realizadores materialismo histórico. c/1972.
por exemplo, que o filósofo John Dewey diretamente ao cérebro.” Para com-
[10]Martha Harnecker. Os conceitos elementais do
Trótski, condenado por “traição” nos mostram Trótski, depois de morto, com
[11]No filme O assassinato de Trótski(1972), de Joseph
uma imagem que remete ao começo
famigerados Processos de Moscou.
Losey, quando o chefe da polícia mexicana indaga
a Mercader “Quem é você?”, em um sussurro ele
do seriado: o Profeta vagando aleato-
Como assinalamos, por opção estéti-
co-ideológica, a série não visa descrever riamente em algum lugar da estepe rus-
Nuovo, n. 217, maio-junho de 1972. Ano XXI, p. 218.
em seus múltiplos aspectos os “dez dias sa nevada, vestido com roupa clara, de responde: “Eu matei Trótski”. Ver Ugo Finetti, in Cinema
[12]Embora algo “desconhecido” para um público mais
que abalaram o mundo” (cf. John Reed). óculos e “armado” com seu bastão. O jovem, o mundo reconstituído em Trótskinão lhe causa
Nem mesmo Sergei Eisenstein teve essa que o impulsionava nessa deambulação estranheza, graças a uma estratégia de atualização da
representação que comporta inclusive ousadas cenas
pretensão ao realizar em 1927 o monu- no Além? Provavelmente, como sugere eróticas – algumas protagonizadas pela icônica artista
[14]
mental Outubro,encomendado para Raquel Barbieri Videal, , ele aguarda- mexicana Frida Kahlo. A propósito, ver Pascal Kané,
“L´effet d´étrangeté”. Cahiers du Cinéma, n. 254-255,
marcar os dez anos da revolução (e do va “o trem blindado do seu passado”, dezembro de 1974-janeiro de 1975.
qual Stalin mandou expurgar Trótski). O que metaforicamente o atinge de fren- [13]Prestigiado no novo cinema da Rússia putinista,
seriado, sem ser propriamente comemo- te, como que sentenciando que foi sua Khabensky encarnou em Almirante(2008), o comandante-
rativo, e abrindo mão de “objetividade”, ambição que o matou. No fecho do chefe do Exército Branco, Aleksandr Koltchak, durante a
Guerra Civil Russa. Em 2018, o ator dirigiu Sobibor, sobre
evoca temas tabus da revolução de 1917 seriado, em tom místico-moralizante, o campo de concentração homônimo. Ver Alexandra
numa perspectiva contemporânea (e em aparece um provérbio bíblico de Salo- Gúzeva. “4 reasons to watch ‘Trotsky’ on Netflix”, in Russia
Beyond. 21 de dezembro de 2018.
sintonia com o contexto econômico-cul- mão, que diz “O caminho dos perversos
tural). É a ideologia do presente que se é como a escuridão, não sabem contra [14]Ver Raquel Barbieri Vidal. “Trotsky na Netflix: uma
série infame que deturpa a história do dirigente da
O Trótski da minissérie não reflete a exasperação das lutas pelo poder nem o terror da revolução, só a obsessiva intenção de “desconstruir” o líder.
impõe na reconstituição de uma ação o que tropeçam.” (Prov. IV, 14-19) Revolução Russa”. 22 de janeiro de 2019.