Page 36 - Revista Política Democrática nº 48 - Outubro/2022
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A IDENTIDADE IMPERIAL RUSSA E A GUERRA NA UCRÂNIA - PAULO CÉSAR NASCIMENTO E LEONE CAMPOS DE SOUSA
Foto: Drop of Light/Shutterstock
O inacreditável custo humano do empreendimento socialista, a estagnação
econômica e a falta de liberdades elementares – civis, políticas, e de expressão
artística – acabaram por minar a legitimidade do regime soviético
Como se sabe, nada disso aconteceu. Ao soviéticas, e, no ano seguinte, a Organização
invés de construir uma economia de merca- de Segurança Coletiva com Armênia, Belarus,
do avançada e gerar riqueza social, a Rússia Cazaquistão e outros Estados da antiga Ásia
enveredou pelo caminho de um capitalismo Central soviética. A nova assertividade da Rús-
selvagem e corrupto, passando a conviver sia foi demonstrada também quando o gover-
com desigualdades sociais nunca existentes no russo reprimiu militarmente a tentativa de
no regime socialista anterior. Para humilhação independência da Chechênia, uma república
do país, sua influência internacional diminuiu islâmica da federação russa, em um conflito
tanto que foi obrigada a engolir a expansão da que se arrastou de 1994 a 1996.
OTAN na área de influência da antiga URSS. Os É preciso assinalar que os ziguezagues na
Estados Unidos, por sua vez, foi paulatinamen- identidade nacional russa, ora aproximando-
te entregando a enfraquecida Rússia à própria -se do modelo ocidental, ora rejeitando-o, não
sorte, na medida em que voltava sua atenção obedecem a qualquer lei histórica ou ciclos
para enfrentar o crescente poderio da China. inevitáveis. Uma variedade múltipla de fatores
Este novo contexto levou a percepção do – econômicos, sociais e políticos – atuam em
Ocidente na Rússia passar de simpatia para sinergia para empurrar a Rússia para um lado
animosidade aberta. Forças políticas naciona- ou outro. A classe ou o estrato da sociedade
listas cresceram entre o eleitorado russo. Já em de onde a elite governante russa é provenien-
1993, o partido liberal-democrático de Vladi- te, seu grau de cosmopolitismo e o nível cul-
mir Zhirinovsky (ultranacionalista, apesar do tural que detém, também exercem influência
nome) saiu o grande vencedor das eleições le- na formação da sua visão sobre o que a Rússia
gislativas. O próprio partido comunista russo, deveria ser.
reorganizado por Guennady Ziuganov após o Além disso, o contexto internacional ofere-
colapso da URSS, renasceu das cinzas, ado- ce seus próprios incentivos, diferentes em cada
tando uma plataforma política com marcado época, para a liderança russa se aproximar
tom nacionalista. A elite mais liberal de econo- ou se afastar do mundo ocidental. Toda essa
mistas e políticos, muito influente nos anos de gama de fatores não impede o historiador, em
transição da URSS para a Rússia pós-soviética, retrospectiva, de reconstituir a trajetória que
praticamente desapareceu do mapa político. levou a uma ou outra opção, mas torna mais
No tocante à política externa, a Rússia bus- difícil ao analista político prever as tendências
cou reaver sua hegemonia na região que deno- do futuro. Não se pode esperar, igualmente,
mina de “exterior próximo”, a antiga área de que uma mudança em favor ou contra o que
influência da URSS. Em 1991, por iniciativa de se percebe como “perspectiva ocidental” tra-
Moscou, foi criada a Comunidade de Estados ga consequências imediatas para o rumo da
Independentes, composta de 11 ex-repúblicas política do país, devido aos múltiplos constran-
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