Page 34 - Revista Política Democrática nº 48 - Outubro/2022
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A IDENTIDADE IMPERIAL RUSSA E A GUERRA NA UCRÂNIA - PAULO CÉSAR NASCIMENTO E LEONE CAMPOS DE SOUSA
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Uma outra parte dos intelectuais russos, ao contrário, tomavam o Ocidente como
modelo a ser seguido pela Rússia
desenvolvido – Inglaterra, Holanda, Alema- mesmo tempo, criticavam o materialismo e o
nha e França –, quanto copiá-los em certos racionalismo ocidentais, bem como a falta de
aspectos. Para tal, procuraram transformar a humanidade e transcendência nas sociedades
velha Rússia oriental, dotando-a de infraes- europeias.
trutura moderna. Racionalizaram sua enorme Uma outra parte dos intelectuais russos, ao
burocracia, incentivaram a ciência e, através contrário, tomavam o Ocidente como modelo
do fortalecimento do exército, ampliaram as a ser seguido pela Rússia, para que esta pudes-
fronteiras do império por meio de várias con- se progredir e entrar no mapa mundial como
quistas militares. Um ponto muito importante a potência que suas dimensões territoriais, re-
dessas mudanças foi a transferência da capi- cursos naturais e milenar civilização exigiam.
tal de Moscou para São Petersburgo, cidade Lamentavam a autocracia czarista, o atraso
construída por Pedro I com o intuito de ser a social e a falta de liberdades democráticas do
“janela para a Europa” da Rússia. país. Sua visão do Ocidente, no entanto, mui-
Esse processo de modernização, contudo, tas vezes pecava por ingenuidade, como se
nunca incorporou o iluminismo europeu, nem fosse possível transferir mecanicamente para
muito menos as instituições democráticas que a Rússia as condições que propiciaram o pro-
se desenvolviam na parte ocidental do velho gresso dos países europeus. Aliás, tal ingenui-
continente. Os sucessivos czares construíram dade parece ser uma constante entre os “oci-
extensas ferrovias, dotaram seus exércitos da dentalistas” russos.
mais moderna artilharia e formaram técnicos Por óbvio, as posições pró e contra o Oci-
e especialistas no exterior; no entanto, não dente nunca apareciam de forma cristalina,
reformaram a monarquia autocrática absolu- nem suas fronteiras eram rigidamente delimi-
tista, que permaneceu sem grandes alterações tadas. Era comum intelectuais russos mudarem
até à Revolução de 1917. de visão ao longo da vida, relutando sobre o
Essa característica da Rússia – desenvolver- que a Rússia deveria ser. O escritor e publicista
-se para competir com as potências europeias, do século XVIII, Denis Ivanovich Fonvisin, resu-
mantendo ao mesmo tempo a tradição auto- miu assim o drama russo: “Como poderemos
crática de governo –, refletia na verdade uma remediar os dois preconceitos contraditórios e
ambiguidade da identidade nacional do país, muito danosos: o primeiro, que tudo o que te-
visível na intelligentsia russa. Parte dela, res- mos é horrível, enquanto nos países estrangei-
sentida pelo atraso cultural e político da Rús- ros tudo é bom; e o segundo, que nos países
sia vis-à-vis o Ocidente, enaltecia elementos estrangeiros tudo é terrível, e conosco tudo
da sua cultura autóctone, como a enigmática é bom?”. Já no plano simbólico, nada atesta
“alma eslava”, a “simplicidade” do muzhik – melhor essa dubiedade da identidade nacional
o camponês russo –, assim como a espiritua- russa do que a iconografia imperial da águia
lidade do povo, representada pela igreja or- bicéfala, com uma cabeça apontando para o
todoxa. Veneravam as tradições eslavas e, ao Oriente e outra para o Ocidente.
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