Page 40 - Revista Política Democrática nº 48 - Outubro/2022
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A IDENTIDADE IMPERIAL RUSSA E A GUERRA NA UCRÂNIA - PAULO CÉSAR NASCIMENTO E LEONE CAMPOS DE SOUSA




                     outras influências que partes substantivas da  desenvolvido, além de sofrer severas sanções
                     Ucrânia sofreram, e que deixaram suas marcas  econômicas. Sua aproximação com a China,
                     na identidade ucraniana moderna.         para contrabalançar o isolamento internacio-
                       A história da Ucrânia mostra que até 1648  nal, tem certa limitação, pois o governo chinês,
                     a grande maioria dos ucranianos vivia sob ju-  embora tenha criticado as sanções ocidentais,
                     risdição da Comunidade Polonesa-Lituana, e  não endossou a invasão da Ucrânia, preferindo
                     que a influência social e cultural da nobreza  abster-se nas votações sobre a guerra na ONU.
                     polonesa perdurou no país até à Revolução de  Pior ainda, se a intenção era evitar a expansão
                     1917. A região da Transcarpátia ucraniana foi  da OTAN, o tiro saiu pela culatra, pois Suécia
                     parte da Hungria, da Idade Média até 1919, e  e Finlândia, países com tradição de neutralida-
                     a Crimeia, conquistada dos turcos otomanos  de, solicitaram admissão no bloco militar.
                     pelo império russo, na época de Catarina II,   A atual estratégia de Moscou parece se li-
                     possui forte tradição islâmica e comunidades  mitar a salvar as aparências e declarar que o
                     tártaras até à época atual.  Ignorando o desen-  objetivo da “ação militar especial”, como o
                     volvimento da identidade ucraniana, Putin ale-  alto comando militar russo denomina a inva-
                     ga que a Ucrânia moderna foi produto da era  são da Ucrânia, foi alcançado com a anexação
                     soviética, uma espécie de entidade artificial,  das regiões do Donbass. Mas a julgar pela con-
                     fruto da “generosidade” dos bolcheviques,  traofensiva ucraniana em curso, a guerra vai
                     esquecendo-se que a questão nacional era  continuar por tempo indeterminado, solapan-
                     tratada por Lenin segundo os princípios da au-  do os recursos da Rússia e obrigando Moscou
                     todeterminação dos povos, e não por razões  a convocar centenas de militares de reservis-
                     de bondade. Putin acusa ainda a Ucrânia de  tas, o que pode minar a popularidade de Pu-
                     querer reescrever sua história desvinculando-a  tin. Sem encontrar saída para o problema que
                     da Rússia, e isso devido a pressões dos Estados  criou, o governo russo faz constantes ameaças
                     Unidos e da União Europeia. E arremata que  de usar o armamento nuclear do país, aumen-
                     “a verdadeira soberania do Estado ucraniano  tando desta forma a escalada do conflito com
                     só é possível em parceria com a Rússia”. Putin,  o Ocidente.
                     dessa forma, trata a Ucrânia como se o país   O isolamento do país deve acentuar ainda
                     ainda  fosse a  “pequena Rússia”  da periferia  mais o nacionalismo antiocidental na socieda-
                     do antigo império czarista.              de russa, assim como a guerra afasta a Ucrânia
                       O que Moscou realmente reativou da era  de sua tradicional ligação com a Rússia, em-
                     soviética foi a escola stalinista de falsificação.  purrando os ucranianos para uma identidade
                     Para justificar uma invasão tão transparente, o  cada vez maior com a Europa ocidental. Se
                     Kremlin lembrou a relação da Ucrânia com a  fizermos um paralelo histórico com a situação
                     OTAN, como se aquele país estivesse prestes  do Japão e da Alemanha, podemos constatar
                     a ser aceito no bloco; exagerou a importân-  que, após o fracasso desses países em expan-
                     cia de grupos ucranianos de extrema-direita,  dir seu poder através de guerras e ocupações
                     afirmando que a invasão militar tinha também  territoriais, ambos se reinventaram e se torna-
                     como propósito “desnazificar” um país que é  ram nações prósperas, respeitadas e influentes
                     governado por um presidente de ascendên-  no mundo. A Rússia, ao contrário, continua a
                     cia judaica; e muito na lógica usada por Hitler  agonizar sobre a perda do status imperial e os
                     para  ocupar em  1938 a  região germanizada  rumos de sua identidade nacional. Catarina II,
                     dos Sudetos, pertencente à antiga Tchecoslo-  ao afirmar que seu império só seria mantido
                     váquia, Moscou alegou que a intervenção era  através da expansão, parece ter lançado uma
                     necessária igualmente para defender os russos  maldição que continua assombrando o país.
                     étnicos da região do Donbass, que estariam
                     sofrendo uma política de extermínio por par-
                     te do governo do atual presidente Volodymyr        SAIBA MAIS SOBRE OS AUTORES
                     Zelensky.
                       Como um jogador compulsivo de pôquer,             PAULO CÉSAR NASCIMENTO
                     Putin apostou todas as fichas em um perigo-
                     so jogo geopolítico que pode voltar-se contra
                     ele. O plano inicial de tomar Kiev e derrubar
                     o governo ucraniano falhou, e a Rússia viu-se        LEONE CAMPOS DE SOUSA
                     isolada política e diplomaticamente do mundo




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