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A IDENTIDADE IMPERIAL RUSSA E A GUERRA NA UCRÂNIA - PAULO CÉSAR NASCIMENTO E LEONE CAMPOS DE SOUSA
A revolução russa de 1917 não alterou sig- fetas da eslavofilia, já que Moscou se tornou
nificativamente o quadro da identidade nacio- finalmente uma “terceira Roma”, ultrapassan-
nal russa, mas deu a ela nova roupagem, além do, em termos de poder, influência e grande-
de ter conciliado, pelo menos temporariamen- za, a Roma dos latinos e a Constantinopla do
te, seus aspectos mais contraditórios. O mar- Império Bizantino.
xismo popularizou-se entre a intelligentsia rus- Somente ancorando nossa análise na so-
sa, a partir da segunda metade do século XIX, ciologia weberiana, que enfatiza a importân-
justamente porque atendia tanto os sonhos da cia dos valores e da motivação dos atores na
escatologia eslavófila, que previa que a Rús- orientação da ação social, somos capazes de
sia se tornaria uma “terceira Roma”, como compreender como a velha Rússia dos czares,
as aspirações dos ocidentalistas, para quem a atrasada e camponesa, pôde dar esse gigan-
ciência do materialismo histórico desenvolvida tesco passo em poucas décadas. A revolução
por Marx apontava para a necessidade de uma de 1917 elevou a Rússia a este patamar gran-
revolução socialista que tiraria a Rússia de seu dioso não tanto por causa da doutrina mar-
atraso histórico. xista ou da economia socialista, mas porque
A Rússia, a partir de 1917, colocou-se dessa soube canalizar, impulsionar e dar um sentido
forma como foco irradiador de uma nova era novo à milenar aspiração russa ao status de
histórica da humanidade. Dalí em diante, se- uma civilização ímpar na história da humani-
riam os russos, com sua revolução, que iriam dade.
mostrar os novos caminhos de desenvolvimen- Ainda assim, a URSS continuava sendo um
to ao Ocidente. É certo que no bolchevismo gigante de pés de barro. Alcançou paridade
havia certos elementos que lembravam a bus- em ogivas nucleares e força militar com os Es-
ca dos eslavófilos por raízes próprias. Afinal tados Unidos, mas continuava atrás dos países
de contas, Lenin rompeu com a socialdemo- ocidentais em termos de instituições políticas
cracia europeia, formando um tipo de parti- democráticas, condições sociais e dignidade
do centralizado até então inexistente entre os humana. A elite soviética pós-stalinista sabia
marxistas, além de adaptar o marxismo às con- disso, assim como a classe média urbana, sem-
dições russas, ao saltar a etapa democrático- pre ávidas por produtos de consumo das eco-
-burguesa pregada pela teoria e avançar direto nomias capitalistas e informação sobre o Oci-
para o socialismo. dente. Por fim, o inacreditável custo humano
Estas considerações à parte, Lenin e os bol- do empreendimento socialista, a estagnação
cheviques mantiveram uma firme perspectiva econômica e a falta de liberdades elementa-
internacionalista. A revolução russa deveria res – civis, políticas, e de expressão artística –
servir como uma faísca irradiadora das revo- acabaram por minar a legitimidade do regime
luções nos países ocidentais, sem as quais a soviético.
Rússia soviética teria muito mais dificuldades Foi nesse contexto de crise e estagnação
em construir plenamente uma sociedade so- que ocorreu, com a Perestroika lançada por
cialista. O Ocidente, contudo, não respondeu Mikhail Gorbachev, em 1986, uma significa-
ao apelo revolucionário, deixando a Rússia tiva mudança da visão da elite dirigente em
isolada entre as nações capitalistas. Essa con- relação ao Ocidente, que pode ser atestada no
juntura minou a perspectiva internacionalista apelo do governante soviético à construção
do partido comunista, que sob o comando de uma “casa comum europeia”. Mais que
de Stalin, nos anos vinte do século passado, um modus vivendi pacífico com o Ocidente, a
desenvolveu a teoria do “socialismo em um Rússia buscava ser parte integrante da civiliza-
só país”, segundo a qual a Rússia, já sob o ção europeia. Mesmo o desmoronamento da
manto da União Soviética, seria capaz não so- União Soviética não alterou esta aspiração, ao
mente de construir o socialismo sem ajuda do contrário, até incentivou-a. Os primeiros anos
Ocidente, como ainda de desempenhar, para da Rússia pós-soviética, ainda sob a liderança
os revolucionários de todo mundo, o papel de de Boris Yeltsin, foram marcados por um in-
“pedra-de-toque” do movimento comunista. tenso sentimento pró-ocidental entre as elites
Posteriormente, a espetacular vitória sobre urbanas do país. Parecia que, livre das amarras
o nazismo na Segunda Guerra Mundial elevou da União Soviética, e de volta ao convívio com
ainda mais o status da URSS, que atingiu, jun- as democracias ocidentais, a Rússia poderia in-
to com os EUA, a condição de superpotência, gressar em um período ilimitado de progresso
realizando dessa forma o velho sonho dos pro- político, econômico e social.
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