Page 35 - Revista Política Democrática nº 48 - Outubro/2022
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A IDENTIDADE IMPERIAL RUSSA E A GUERRA NA UCRÂNIA - PAULO CÉSAR NASCIMENTO E LEONE CAMPOS DE SOUSA




                       A revolução russa de 1917 não alterou sig-  fetas da eslavofilia, já que Moscou  se tornou
                     nificativamente o quadro da identidade nacio-  finalmente uma “terceira Roma”, ultrapassan-
                     nal russa, mas deu a ela nova roupagem, além  do, em termos de poder, influência e grande-
                     de ter conciliado, pelo menos temporariamen-  za, a Roma dos latinos e a Constantinopla do
                     te, seus aspectos mais contraditórios.  O mar-  Império Bizantino.
                     xismo popularizou-se entre a intelligentsia rus-  Somente ancorando nossa análise na so-
                     sa, a partir da segunda metade do século XIX,  ciologia weberiana, que enfatiza a importân-
                     justamente porque atendia tanto os sonhos da  cia dos valores e da motivação dos atores na
                     escatologia eslavófila, que previa que a  Rús-  orientação da ação social, somos capazes de
                     sia se tornaria uma “terceira Roma”, como  compreender como a velha Rússia dos czares,
                     as aspirações dos ocidentalistas, para quem a  atrasada e camponesa, pôde dar esse gigan-
                     ciência do materialismo histórico desenvolvida  tesco passo em poucas décadas. A revolução
                     por Marx apontava para a necessidade de uma  de 1917 elevou a Rússia a este patamar gran-
                     revolução socialista que tiraria a Rússia de seu  dioso  não  tanto  por  causa  da  doutrina  mar-
                     atraso histórico.                        xista ou da economia socialista, mas porque
                       A Rússia, a partir de 1917, colocou-se dessa  soube canalizar, impulsionar e dar um sentido
                     forma como foco irradiador de uma nova era  novo à milenar aspiração russa ao status de
                     histórica da humanidade.  Dalí em diante, se-  uma civilização ímpar na história da humani-
                     riam os russos, com sua revolução, que iriam  dade.
                     mostrar os novos caminhos de desenvolvimen-  Ainda assim, a URSS continuava sendo um
                     to ao Ocidente.  É certo que no bolchevismo  gigante  de pés  de barro.  Alcançou  paridade
                     havia certos elementos que lembravam a bus-  em ogivas nucleares e força militar com os Es-
                     ca dos eslavófilos por raízes próprias.  Afinal  tados Unidos, mas continuava atrás dos países
                     de contas, Lenin rompeu com a socialdemo-  ocidentais em termos de instituições políticas
                     cracia europeia, formando um tipo de parti-  democráticas, condições sociais e dignidade
                     do centralizado até então inexistente entre os  humana. A elite soviética pós-stalinista sabia
                     marxistas, além de adaptar o marxismo às con-  disso, assim como a classe média urbana, sem-
                     dições russas, ao saltar a etapa democrático-  pre ávidas por produtos de consumo das eco-
                     -burguesa pregada pela teoria e avançar direto  nomias capitalistas e informação sobre o Oci-
                     para o socialismo.                       dente. Por fim, o inacreditável custo humano
                       Estas considerações à parte, Lenin e os bol-  do empreendimento  socialista,  a estagnação
                     cheviques mantiveram uma firme perspectiva  econômica e a falta de liberdades elementa-
                     internacionalista. A revolução russa deveria  res – civis, políticas, e de expressão artística –
                     servir como uma faísca irradiadora das revo-  acabaram por minar a legitimidade do regime
                     luções nos países ocidentais, sem as quais a  soviético.
                     Rússia soviética teria muito mais dificuldades   Foi nesse contexto de crise e estagnação
                     em construir plenamente uma sociedade so-  que ocorreu, com  a Perestroika  lançada por
                     cialista. O Ocidente, contudo, não respondeu  Mikhail  Gorbachev,  em  1986,  uma  significa-
                     ao apelo revolucionário, deixando a Rússia  tiva mudança da visão da elite dirigente em
                     isolada entre as nações capitalistas.  Essa con-  relação ao Ocidente, que pode ser atestada no
                     juntura minou a perspectiva internacionalista  apelo do governante soviético à construção
                     do partido comunista, que sob o comando  de uma “casa comum europeia”. Mais que
                     de Stalin, nos anos vinte do século passado,  um modus vivendi pacífico com o Ocidente, a
                     desenvolveu a teoria  do “socialismo em um  Rússia buscava ser parte integrante da civiliza-
                     só país”, segundo a qual  a Rússia, já sob o  ção europeia. Mesmo o desmoronamento da
                     manto da União Soviética, seria capaz não so-  União Soviética não alterou esta aspiração, ao
                     mente de construir o socialismo sem ajuda do  contrário, até incentivou-a. Os primeiros anos
                     Ocidente, como ainda de desempenhar,  para  da Rússia pós-soviética, ainda sob a liderança
                     os revolucionários de todo mundo, o papel de  de Boris Yeltsin, foram marcados por um in-
                     “pedra-de-toque” do movimento comunista.  tenso sentimento pró-ocidental entre as elites
                       Posteriormente, a espetacular vitória sobre  urbanas do país. Parecia que, livre das amarras
                     o nazismo na Segunda Guerra Mundial elevou  da União Soviética, e de volta ao convívio com
                     ainda mais o status da URSS, que atingiu, jun-  as democracias ocidentais, a Rússia poderia in-

                     to com os EUA, a condição de superpotência,  gressar em um período ilimitado de progresso
                     realizando dessa forma o velho sonho dos pro-  político, econômico e social.




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