Page 27 - Revista Política Democrática nº 48 - Outubro/2022
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UM TSUNAMI CHAMADO GODARD - LILIA LUSTOSA
famosa Cahiers du Cinéma, revista que reunia justamente escapar da cilada armada pelas eli-
um bando de jovens cinéfilos idealistas que so- tes francesas.
nhavam com um novo cinema para a França, Sua fama e sua influência, porém, já atra-
um cinema de autor, menos preso aos padrões vessavam fronteiras e inspiravam cineastas em
do classicismo em voga. diversas partes do mundo, incluindo os jovens
Aproveitando-se, então, das novas tecnolo- cinemanovistas que, naquele agitado início
gias da época – como a câmera leve e o gra- dos anos 60, se reuniam no Rio de Janeiro em
vador portátil Nagra –, Godard ousou dispen- torno do baiano Glauber Rocha e viam em
sar o tripé, colocar a câmera na mão, filmar Godard um modelo e uma fonte de inspiração
nas ruas e ainda romper com a quarta parede, para realizar um cinema genuinamente brasi-
colocando Jean-Paul Belmondo falando direta- leiro, de baixo custo, independente e livre das
mente para a câmera (e para os espectadores) amarras das indústrias cinematográficas nacio-
já em seu primeiro longa-metragem, Acossado nal e internacional.
(1960). Na ocasião, decidiu também não res- E Godard não parou por aí… Nos anos
peitar a continuidade dos planos (os raccords), 1980, com o capítulo Dziga Vertov já encer-
causando certo estranhamento na plateia que rado, causou mais uma vez polêmica com o
assistia àquelas cenas com encanto e estar- ousado Eu Vos Saúdo Maria (1985), que tra-
recimento. Um verdadeiro ícone da Nouvelle zia a história bíblica de Maria e José para um
Vague. mundo contemporâneo, colocando em pauta
A partir dali, Godard não mais parou de ino- (e em dúvida) a gravidez da moça virgem, mãe
var, radicalizando e politizando cada vez mais de um messias salvador. O filme foi rejeitado
a estética e a temática de seus filmes. De O pelo papa João Paulo II naquele então e, claro,
Desprezo (1963), passando por Banda à par- proibido no Brasil da ditadura militar.
te (1964), por A Chinesa (1967) e por tantos O século 21 chegou, e Godard continuava
outros longas, sua obra acabou por conduzi-lo ativo e operante. Ganhou o Prêmio do Júri
ainda nos anos 60 a formar o grupo Dziga Ver- no Festival de Cannes, com seu experimental
tov junto com Jean-Pierre Gorin, politizando Adeus à Linguagem (2014), dividindo o prê-
completamente sua arte. Inspirados pela ide- mio com Mommy (2014), do canadense Xavier
ologia marxista, seus filmes se tornaram me- Dolan, 59 anos mais novo que ele. Em 2018,
nos comerciais, mais experimentais, e fugiam o incansável cineasta emplacou mais um filme
da ideia da autoria (pessoal). Godard começou em competição em Cannes, Imagem e Palavra
a se desentender até mesmo com os amigos (2018), nomeado em diversas categorias, mas
da Nouvelle Vague, como François Truffaut, acabou levando “apenas” a Palma de Ouro
um dos membros fundadores do movimento. honorária do Festival por sua contribuição à
Em sua visão, o colega compatriota estava “se sétima arte.
aburguesando” demais, enquanto ele buscava E, recentemente, mais uma vez, o franco-suíço
O céu parecia ser mesmo seu único limite…
“ causou espanto ao anunciar o iminente suicí-
dio assistido, permitido por lei na Suíça, seu
país de morada e de segunda nacionalidade.
Para o espanto e a tristeza de milhões de ci-
SUA FAMA E SUA
chegou ao fim no dia 13 de setembro último.
INFLUÊNCIA, PORÉM, néfilos, o longa experimental que foi sua vida
No entanto, enquanto os créditos continuam a
subir na tela, sua influência e inspiração segui-
JÁ ATRAVESSAVAM rão para sempre nas retinas, mentes e lentes
FRONTEIRAS E dos milhares de discípulos e fãs mundo afora.
Que os céus recebam Godard de portões
INSPIRAVAM CINEASTAS abertos e se deixem inundar por sua criativida-
de, rebeldia e talento!
EM DIVERSAS PARTES DO
“ LILIA LUSTOSA
MUNDO SAIBA MAIS SOBRE A AUTORA
OUTUBRO 2022 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 27