Page 50 - Revista Política Democrática nº 49 - Novembro/2022
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BARDO: A VIAGEM DE IÑÁRRITU - LILIA LUSTOSA




                     pelo personagem Silverio Gacho (Daniel  reos do deserto que separa México dos
                     Giménez  Cacho),  um  documentaris-      EUA e que é palco para uma das cenas
                     ta mexicano que volta à sua terra na-    mais fortes de Babel (2006). Ou os estu-
                     tal depois de quase 20 anos morando  pendos planos gerais rodados em 65mm
                     nos Estados Unidos. Um cidadão ilustre  como os vistos em O  Regresso (2015).
                     de seu país, mesmo que tenha decidi-     Ou, ainda, os fantásticos planos-sequên-
                     do abandoná-lo. Ou, quem sabe, justa-    cias que perseguem o protagonista em
                     “                                        fóbico, assim como acontece em  Bird-
                                                              um caminho quase labiríntico, claustro-
                     mente por isso…
                                                              man (2014).
                                                                No entanto, apesar da maestria com
                                                              que conduz essa obra grandiosa (e cara)
                                                              que é  Bardo, o diretor mexicano tem
                     Bardo flui bem,
                                                              especialistas, que o acusam de arrogan-
                                                              te, narcisista e de haver realizado ali uma
                     conduzindo o espectador                  sido alvo de muitas críticas por parte de
                                                              pseudo autocrítica. Isso porque o que
                                                              está em questão em seu longa é uma
                     de maneira quase                         imigração privilegiada, que não teve que
                                                              atravessar nenhum deserto, nem quais-
                     hipnótica pelos labirintos               quer águas bravias. Ou seja, uma expa-
                                                              triação voluntária que lhe permitiu ver o
                                                              país de cima, da classe executiva, e que
                     da cabeça (e do país)                    o fez aterrissar em solo seguro, protegi-
                                                              do por um visto migratório, com a sem-
                     desse grande diretor ”                   pre liberdade de poder voltar.



                       A história se passa em um limbo que    “
                     permite a Silverio ver de longe sua pró-
                     pria vida, fazendo um  mea culpa  e, ao   Diretor mexicano tem
                     mesmo  tempo,  tentando  identificar
                     acertos. Um estado mental que faz re-
                     fletir sobre decisões tomadas, lutos vi-  sido alvo de muitas
                     vidos, cicatrizes deixadas e feridas não
                     curadas dessa caminhada sem guia que     críticas por parte de
                     é a vida. Aliás, esse limbo explica o título
                     do filme, já  que “bardo”,  no budismo,
                     significa um estado intermediário entre   especialistas, que o
                     a morte e o renascimento.
                       Bardo é um filme nostálgico, melancó-
                     lico, além de ser uma bela reflexão sobre   acusam de arrogante”
                     imigração, deslocamento, pertencimen-
                     to,  sobre  sentir-se  deslocado,  às  vezes,
                     tresloucado, fora de lugar. Sobre estar    Certamente, sua mudança para a terra
                     nesse não-lugar de ser estrangeiro, de  de Tio Sam não tem nada a ver com a de
                     ser muito mexicano para ser americano  seus tantos compatriotas que arriscam o
                     e muito americano para ser mexicano.     que têm e que não têm para realizar o
                       Para colocar tudo isso na tela, Iñarritú  american dream. Nem por isso os questio-
                     recorre ao onírico, aos símbolos, às me-  namentos de Bardo são menos valiosos.
                     táforas, percorrendo elementos de sua  O que Iñarritu coloca sobre a mesa em
                     própria filmografia, o que, para olhos  sua autoficção, como ele mesmo descre-
                     atentos, não será difícil de identificar. Há  ve o filme, é algo interessante de ser pen-
                     pistas bem claras, como os planos aé-    sado e discutido. Uma história fantástica,




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