Page 37 - Revista Política Democrática nº 46 - Agosto/2022
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representaria uma injeção de dinheiro na eco-  comprar comida e 28% dos negros e 20% dos

                     nomia fluminense capaz de gerar pelo menos  latinos não pagavam aluguel em dia. A pobre-
                     uns 10 mil empregos diretos e dezenas de  za virou vizinha, habita as calçadas do Champs
                     milhares de indiretos. Agora, imagine se mul-  Élysées, da Gran Via ou uma esquina da 5ª Ave-
                     tiplicarmos isso por 10, 20 plataformas. Isso  nida. Daí o desespero da Comissão Europeia e

                     mudaria a cara do Rio de Janeiro, refletindo  do governo Biden com a infl ação estourando
                     em todo o Brasil. O Rio hoje é uma cidade com  nos 2 dígitos.
                     alto índice de violência e centenas de milhares   Temos uma geração de sobreviventes que,
                     de crianças condenadas a serem cidadãs de se-  cedo ou tarde, irá se confrontar com outros
                     gunda classe, como acontece nos países nossos  desta mesma geração tocados pela sorte de es-
                     vizinhos ou na África.                   tudar, comer, receber amor e respeito. O abis-
                       Num texto brilhante, publicado em março  mo entre a classe média e os pobres fi cou tão
                     deste ano, meu amigo Jamil Chade, pai de  grande, tão profundo, a ponto de transformar
                     2 garotos, descreve, com clareza e emoção à  num privilégio coisas básicas como comer, to-

                     flor da pele, a história de meninos e meninas  mar banho, vestir e estudar. A bomba-relógio
                     vítimas de todo tipo de violência. Jamil nos leva  armada a partir do pós-guerra dividiu o mundo
                     aos cárceres do Estado Islâmico, à Servia, a um  entre ricos e pobres. Agora, faz tique-taque nas
                     campo de refugiados no Quênia e à cidade de  grandes cidades do mundo desenvolvido. A
                     Bagamoyo, na Tanzânia, onde conheceu duas  miséria deixou de ser invisível, remota, para se
                     um bloquinho na mão e uma câmera fotográfi- “
                     meninas, de no máximo 10 anos de idade, que  tornar presente, cotidiana, ousada e incômoda.
                     brincavam no pátio de um hospital. Conversou
                     com elas e mostrou um cartão de visitas com
                     seu nome, porque as garotas não entendiam
                     direito quem era aquele homem branco com

                     ca pendurada no pescoço.                 COMO SERÁ A SOCIEDADE
                     conexão Genebra-Bagamoyo. Dentro de um  QUE ESTAS CRIANÇAS
                       Passou um tempo, e o Correio fez uma

                     envelope surrado, Jamil encontrou um pedido
                     desesperado de ajuda de uma das meninas. Su-  CONSTRUIRÃO DEPOIS DE
                     plicava que a levasse dali e prometia amor para
                     o mesmo que eu chorei quando li seu texto.  ADULTAS?                           “
                     sempre. Jamil chorou o choro dos impotentes,
                     Aquela criança faria qualquer coisa – qualquer
                     coisa! – para escapar daquela escuridão miserá-
                     vel: “preciso sair daqui”.                 Antigamente - ou seja, há uma década, no

                       As guerras, a inflação, a falta de educação  máximo -, uma pessoa saía do Brasil, da África
                     e de cidadania são irmãs da miséria e da fome.  ou da Ásia para ser pobre ou remediado nos
                     Elas hoje brincam de mãos dadas pelos campos  Estados Unidos ou na Europa, porque a vida
                     de refugiados da África, nas cidades destruídas  era mais digna, as crianças comiam e estuda-
                     da Ucrânia, nas noites de terror do Afeganistão,  vam. A brutal concentração de renda patroci-
                     nas calçadas superpovoadas de Nova Dehli, do  nada pelo setor fi nanceiro, tão criticada pelo
                     Rio, de São Paulo, nas palafitas de Manaus e  fi lósofo Stéphane Hessel, gerou a globalização

                     Belém ou nas ruas de terra batida das periferias  da pobreza. E ao escrever sobre ela, há mais de
                     de Recife e Salvador.                    20 anos, o professor Milton Santos foi proféti-
                       Estas irmãs, agora, também andam pelas  co: “A globalização mata a noção de solidarie-
                     ruas de Paris, Madrid, Londres ou Roma. Em  dade, devolve o homem à condição primitiva
                     plena pandemia, um amigo diplomata ligou  do cada um por si e, como se voltássemos a
                     para contar que, em Genebra, os pobres es-  ser animais da selva, reduz as noções de mora-
                     tavam pedindo esmola nos sinais. Nos Estados  lidade pública e particular a um quase nada”.
                     Unidos, a pobreza também chegou forte. No
                     fim do ano passado, uma pesquisa mostrou            SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR

                     que cerca de 30% dos americanos não con-
                     seguiam bancar despesas básicas, 12% dos               MARCELO S. TOGNOZZI

                     chefes de família amargavam dificuldade para



        AGOSTO  2022                            REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA                                    37
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