Page 47 - Revista Política Democrática Online nº 40 - Fevereiroo/2022
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TADEU CHIARELLI -  NOTAS SOBRE O FUTURISMO ITALIANO E O MODERNISMO DE SÃO PAULO




                     fundo, se apoia em uma proposta que pode ser   “
                     associada, no limite, às considerações do teóri-
                     co neoclássico alemão, J.J. Winckelmann. Esse
                     teórico, na segunda metade do século XVIII,   SABEMOS MUITO BEM
                     propunha que a arte estivesse sempre presa a
                     uma “nobre simplicidade e a uma grandeza   QUE TARSILA “CAIU” NO
                     serena”.[2] Por mais estranha que pareça esta
                     relação entre o modernismo paulistano e o ne-  CUBISMO, MAS NUM
                     oclassicismo, não se deve esquecer o conselho
                     que o crítico Mario de Andrade deu à pintora   CUBISMO ENTENDIDO
                     Tarsila do Amaral, em junho de 1923: “(…)
                     Creio que não cairás no cubismo. Aproveita   COMO FERRAMENTA PARA
                     dele apenas os ensinamentos. Equilíbrio, Cons-
                     trução, Sobriedade. Cuidado com o abstrato. A
                     pintura tem campo próprio (…)”[3].         REFORÇAR UMA ORDEM
                       Sabemos muito bem que Tarsila “caiu” no
                     cubismo, mas num cubismo entendido como    ESTRUTURAL DO UNIVERSO
                     ferramenta para reforçar uma ordem estrutural
                     do universo plástico. Para a pintora, não vamos   PLÁSTICO
                     nos esquecer, o cubismo era o exercício “mili-                                 “
                     tar” pelo qual todo artista deveria passar.[4]
                       Mesmo Menotti Del Picchia – um intelectual
                     que fazia parte do “lado B” do modernismo –  paulistano, que solicitava uma arte “diferente”,
                     associava o cubismo à grande tradição da arte:   porém ligada à tradição.
                       O cubismo – reagindo contra o impressionis-  É a partir da análise de seus trabalhos
                     mo diluidor e invertebrado – tem, no fundo, a  que será possível notar que o modernismo
                     chancela parnasiana. O esforço de sintetismo,  paulistano, ao mesmo tempo em que pôde
                     de estrutura sólida, de equilíbrio de materiais  ser interpretado por alguns como uma afronta
                     concretos, de sentido arquitetônico que se dá  ao bom-gosto, para outros – por sua adesão
                     hoje à escultura, à pintura, à poesia e à prosa  à  ordem estrutural  da  pintura e  da  escultura
                     – imposições disciplinadoras de velhos cilícios  pós-vanguarda que praticavam – eles se
                     clássicos – não será uma das vitórias do classi-  tornaram mais uma estratégia de conciliação
                     cismo, uma reação no fundo antirromântica?[5]  entre presente e passado – uma prática típica
                       Seu compromisso com a grande tradição da  da elite de São Paulo e do país. Afinal, essa
                     arte fez com que o modernismo absorvesse um  elite sempre soube naturalizar as diferenças e
                     interesse pelo valor artesanal da obra – o que im-  aparentemente zerar as contradições.
                     pedia qualquer “subversão” à grande pintura e   Na arte modernista, por exemplo, não exis-
                     à grande escultura (nada, portanto, de colagens  tiu a colagem (apenas o uso de sua lógica na
                     ou do uso de materiais heterodoxos). Por outro  pintura de Tarsila) e, muito menos, um direcio-
                     lado, no entanto, trazia também a busca de sín-  namento mais efetivo rumo à não-figuração.
                     tese da forma, o que retirava seus artistas mais  Pensavam: como e por que explorar a não-fi-
                     significativos  (com  exceção  de  um  certo  Porti-  guração no âmbito de uma arte que se pre-
                     nari) de uma adesão irrestrita ao realismo mais  tendia “moderna”, mas, ao mesmo tempo, se
                     convencional. Ou seja: a pintura e a escultura  mantinha comprometida com a necessidade
                     do modernismo podem ser pensadas como es-  de representar as paisagens humana física do
                     truturalmente conservadoras e superficialmente  Brasil? Afinal, para os modernistas era funda-
                     “modernas”, devido, justamente, à representa-  mental criar uma arte que representasse o ho-
                     ção esquemática que imperava na maioria da  mem e a natureza do país, porque, somente
                     produção do grupo, de Anita a Portinari[6].   assim, teríamos uma “arte nacional”.
                       Estabeleço tais paradigmas, sem a intenção   Por todas as questões aqui anotadas, espero
                     de desqualificar os artistas do modernismo. In-  ter ficado clara a impossibilidade de um estudo
                     clusive, penso que, por terem conseguido man-  que busque conexões entre as artes visuais da
                     ter um equilíbrio entre tradição e a busca de  Itália futurista e do modernismo de São Paulo.
                     síntese (essa última aproximando-os da “arte  É que esse último, de fato, estava mais próximo
                     moderna”), eles devem ser reconhecidos por  ao Novecento italiano (esse sim um movimento
                     terem sabido se adequar às demandas do meio  moderno e conservador, ligado ao Retorno à



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