Page 7 - Revista Política Democrática Online nº 39 - Janeiro/2022
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MESMA FALTA DE INDIGNAÇÃO NO BRASIL, 200 ANOS DEPOIS - CRISTOVAM BUARQUE




                     ao olhar com mais critério, além de registrar o
                     avanço no atendimento médico e no aumen- “
                     to da esperança de vida para todos brasileiros,
                     veria que o salto foi tão maior para os descen-  O GRANDE AVANÇO
                     dentes sociais da Casa Grande, que surgiu uma
                     desigualdade na esperança de vida conforme a
                     renda e o endereço das pessoas. Notaria que,   VERIFICADO PELO
                     de um bairro a outro, um brasileiro tem direito
                     a viver muitos anos mais que outro, graças a ter
                     dinheiro para comprar saúde e vida.       VIAJANTE ESTARIA

                       Da mesma forma, ficaria surpreso com o avan-
                     ço educacional. A população quase totalmente
                     analfabeta de antes saltou para a realidade atual   NA INTEGRAÇÃO
                     de quase todos matriculados em escolas, inclu-
                     sive os descendentes sociais dos escravos; mas
                     logo veria como aumentou a desigualdade es-  TERRITORIAL E
                     colar. Em 1822, todos eram analfabetos e sem
                     escola, agora, apesar de todos matriculados,   NA POTÊNCIA
                     surgiu uma desigualdade abismal entre a educa-
                     ção oferecida aos descendentes sociais da Casa
                     Grande, e a educação relegada dos pobres des-  ECONÔMICA,
                     cendentes sociais da Senzala. Ao ponto de, 200
                     anos depois, somam ainda 10 a 12 milhões os
                     betos funcionais e quase todos analfabetos para  CONSTRUÍDAS NOS
                     adultos analfabetos plenos, 70 milhões analfa-
                     o mundo contemporâneo do século XXI.
                     acreditaria no que vê: edificações, rodovias,  DOIS SÉCULOS
                       Ao caminhar pelas cidades, o visitante não

                     pontes, veículos inimagináveis à época, mas                                   “
                     observaria o caos urbanos que caracteriza as
                     “monstrópoles” de hoje; e veria a desigualdade
                     ampliada no conforto, na segurança, na higie-
                     ne que, apesar de melhorar para todos, melho-  Sobretudo, a grande surpresa do viajante,
                     rou muito mais para poucos, chegando a fazer  ao conversar com os habitantes de hoje, seria
                     mais desiguais o condomínio e a favela do que  perceber como em nada mudou a aceitação
                     a Casa Grande e a Senzala.               de injustiças e atrasos. Em 1822, teria assisti-

                       O grande avanço verifi cado pelo via-  do justificar-se o tratamento dado aos escravos
                     jante estaria na integração territorial e na  sob o argumento de que “eles são negros”; em
                     potência econômica, construídas nos dois  2022, ouviria a justificação do absurdo da desi-

                     séculos. O território litorâneo produtor de  gualdade escolar sob o argumento de que “eles
                     café e açúcar havia-se expandido por todos  são pobres”, os sem escola. A mesma aceitação
                     os 8,5 milhões de quilômetros quadrados,  com a escravidão, agora com a desigualdade.
                     todo ele cortado por estradas e dispondo   A imensa falta de indignação diante da po-
                     de  aeroportos,  para  não falar  no milagre  breza e da injustiça, o visitante sentiria ao ver na
                     da telefonia e da internet. O país havia-se  televisão, com naturalidade, simultaneamente
                     benefi ciado da revolução industrial que sur-  notícia de 20 milhões de famintos sem comida
                     gia no mundo nas primeiras décadas de sua  em casa e propaganda de comida, publicidade
                     independência e se transformado em uma  de concursos de alta gastronomia, aulas de culi-
                     das dez maiores potências do mundo.      nária e a afirmação de que o país que nasceu

                       Mas, ao prestar mais atenção, descobriria  200 anos atrás agora é o celeiro do mundo,
                     que, apesar de mudar para o Centro-Oeste, o  mas não alimenta.
                     principal setor produtivo continua agroexporta-
                     dor, e sua formidável rede de transporte carece     SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
                     de eficiência, ao passo que a indústria até hoje

                     depende de proteção estatal por falta de com-          CRISTOVAM BUARQUE
                     petitividade e inovação.



       JANEIRO 2022                             REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA                                    7
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