Page 34 - Revista Política Democrática nº 50 - Dezembro/2022
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SÃO ISMAEL SILVA - IVAN ALVES FILHO




                     este materializasse uma extensão de seu   quando lhe anunciaram, em plena redação
                     próprio corpo. E talvez fosse mesmo.     da sucursal carioca do Estadão, o assassi-
                       Quando ele não comparecia à nossa      nato de um querido amigo, o comunista
                     casa, meu pai e eu o visitávamos em seu   histórico Carlos Marighella.
                     château modesto. E põe modesto nisso:
                     o nosso amigo morava em um pequeno       “
                     quarto, com paredes pintadas de verde, no
                     bairro do Estácio. Acredito que na própria
                     Mem de Sá, já não lembro bem. Só não me   Politicamente
                     esqueci da escada comprida de madeira
                     que tínhamos de subir – ou, melhor dizen-
                     do, escalar - para chegar ao santuário dele.   conservador, desabou
                       Sua vida nem sempre fora um mar de
                     para o rapaz. Filho de cozinheiro, ele traba- no choro quando
                     rosas. Parece até que já fi zeram muamba
                     lhou alguns anos como pedreiro. Por causa
                     de tantas desavenças, cumpriu alguns anos   lhe anunciaramo
                     de cadeia. Quem disse que malandro não
                     tinha palavra? Ele era aquele que na escola   assassinato de um
                     de samba tocava cuíca, surdo e tamborim.
                     Compositor inspiradíssimo, ele nos legou
                     Adeus, em parceria com ninguém menos     querido amigo, o
                     do que Noel Rosa! Com Nilton Bastos, ele
                     compôs o icônico Se você jurar - ou a mu-
                     lher não é mesmo um jogo difícil de acer-  comunista histórico
                     “                                        velho amigo bondoso de meu pai can-
                     tar? Mas o homem como um bobo...
                                                              Carlos Marighella”


                                                                Tenho  saudades  dos  sambas  que  o
                     Ele cantava com voz


                                                              a feijoada que minha mãe preparava
                     fanhosa, ligeiramente                    tava lá em casa, enquanto aguardava
                                                              pacientemente na cozinha. Quanta sa-
                                                              bedoria havia neles! Isso acontecia nor-
                     empostada”                               malmente em um sábado. Ele cantava
                                                              com voz fanhosa, ligeiramente empos-
                                                              tada. Sua alegria de viver se espalhava
                                                              pelos quatro cantos da nossa casa, con-
                       Era um sujeito bondoso. Dava a impres-  tagiando até as crianças, ou seja, minha
                     são de ser um homem feliz, apesar dos pro-  irmã, Abua, e eu: “Aurora vem raiando
                     blemas que enfrentou. Gozava da amizade   anunciando o nosso amor...”
                     de muita gente bamba, como Prudente        Não era por acaso que, para muitos, ele
                     de Morais, neto, jornalista e participante   era São Ismael Silva, uma espécie singula-
                     da Semana de Arte Moderna de 22. Pru-    ríssima de santo profano, criador da Deixa
                     dentino, como todos o chamavam, era o    Falar, a primeira escola de samba do car-
                     Pedro Dantas da célebre Semana, amigo    naval brasileiro. Sim, Ismael Silva valia por
                     de Mário de Andrade e Sérgio Buarque de   uma instituição inteira - uma instituição
                     Holanda. Não era para qualquer um. Ali-  bem brasileira.
                     ás, Prudente de Morais era amigo ainda de   Ismael Silva: Saudades e adeus – palavra
                     outra grande fi gura da vida boêmia do Rio   que faz chorar.
                     de Janeiro, ninguém menos do que Mada-
                     me Satã. Prudente de Morais uniu sempre             SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
                     o nacional e o popular. Foi o único torcedor
                     do Madureira que eu conheci na vida. Po-                 IVAN ALVES FILHO
                     liticamente conservador, desabou no choro



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