Page 43 - Revista Política Democrática nº 47 - Setembro/2022
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VLADIMIR CARVALHO - GODARD, O GÊNIO EXAUSTO




                     confusão, surpreendeu a todos, negando   elogios de Georges Sadoul à Aruanda, o
                     peremptoriamente a autoria da mensagem,   filme de Linduarte Noronha, em que atuei
                     e atribuindo-a a terceiros. Quando tomou   como roteirista e assistente, e num rom-
                     conhecimento da negaça, o crítico Robert   pante juvenil pouco me interessava que
                     Benayon, da revista Positif, rival dos Cahie-  Godard o achasse um stalinista superado
                     rs, presente ao evento brasileiro, desabafou   pelo tempo, que já era tomado pelo revi-
                     para quem quisesse ouvir. Para ele, tratava-   sionismo que resultou das sérias denúncias
                     se de “mais uma daquele fascista!”. Nesse   feitas por Kruschev; nem tomáramos co-
                     tempo, andava o autor dessas notas, traba-  nhecimento das restrições de Lévi Strauss
                     lhando como assistente de Arnaldo Jabor,   ao franco suíço; tampouco da ojeriza que
                     num filme que realizou sobre o FIF, Rio,   Jeanne Moreau lhe dedicava. Godard vivia
                     Capital do Cinema, e ouviu os comentários   agora a sua febre maoísta junto ao Grupo
                     acerca desse lance, nos bastidores da sede   Dziga Vertov. E era nosso herói.
                                                                Muito depois é que tomaríamos co-
                     da mostra, no Copacabana Palace.         nhecimento das peripécias do nosso ídolo
                     “                                        quando da realização de seu filme Vento

                                                              do Leste. Ele proporia a Glauber Rocha,
                                                              que fazia importante participação na obra,
                                                              que juntos destruíssem o cinema como
                                                              arte. O brasileiro, sagaz como sempre,
                     Godard vivia agora a sua
                                                              cumbir à depressão e militava numa espé-
                     febre maoísta junto ao                   logo sacou que Godard começava a su-
                                                              cie de autodestruição, e a sua resposta foi
                                                              a de que ele, Glauber, ao contrário, optava
                     Grupo Dziga Vertov ”                     pela construção de um cinema inovador e
                                                              de salvação, no Brasil e no Terceiro Mundo.
                                                                Gênio consumado, mas profundamente
                                                              contraditório e iconoclasta, talvez naque-
                                                              le momento já se manifestasse no espírito
                       Essa época no Rio foi muito marcada    de JLG o quadro psíquico que o dominou
                     pelos filmes e paixão pelos diretores da   no fim da vida, depois da realização de fil-
                     Nouvelle Vague. Uma pequena multidão     mes não tão brilhantes e plenos de vigor,
                     de cinéfilos não arredava o pé das sessões   como os daquela fase em que fez sombra
                     do Cinema Paissandu, no Flamengo. Ali    a toda uma geração do cinema francês da
                     enturmei-me levado pelas mãos de Cos-    Nouvelle Vague. Oriundos quase todos dos
                     me Alves Neto e assisti, imerso na euforia   Cahiers, o qual terminou, é bom lembrar,
                     da rapaziada, a quase todos os filmes de   por apoiar o Cinema Novo brasileiro, espe-
                     Godard lançados ali naquele ano de 1968.   cialmente promovendo seus autores mais
                     A cidade tomada pelo alvoroço político e   importantes e mais afinados com o ideário
                     pela revolta em virtude da morte de Edson   da revista, como é o caso de Glauber Ro-
                     Luiz, secundarista assassinado pela polícia   cha, Cacá Diegues e Gustavo Dahl.
                     no restaurante Calabouço, no aterro do     Embora tumultuada, a existência de
                     Flamengo, estava transtornada. O clima   Godard foi profícua e intensa, mas sua
                     era de insegurança e medo, mas filmes    morte assistida parece se justificar pelo
                     como Tempo de Guerra, de Godard, nos     cansaço e esgotamento que o vitimou, e
                     convocavam à ação, e, portanto, era tam-  sua descida se deu também pela inexo-
                     bém do Paissandu que partíamos para en-  rável ação, digamos assim, da força da
                     grossar as fileiras da célebre Passeata dos   gravidade em vista do peso de seus 91
                     Cem Mil. O Maio de 68 estava fresquinho   anos. Que descanse em paz!
                     em nossas agitadas cabeças. Mesmo sa-
                     bendo das restrições ao autor de Mascu-
                     lino, Feminino, taxado até de fascista pelo         SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
                     pessoal da revista Positif, numa linha edi-
                     torial que confrontava com os Cahiers du               VLADIMIR CARVALHO
                     Cinéma, eu pouco ligava. Já havia lido os




       SETEMBRO  2022                           REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA                                    43
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