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14 RISCO DE ETNOCÍDIO NA VOLTA GRANDE DO XINGU - CLEOMAR ALMEIDA REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA CLEOMAR ALMEIDA - RISCO DE ETNOCÍDIO NA VOLTA GRANDE DO XINGU 15
RISCO DE ETNOCÍDIO NA ASSISTA ÀS ENTREVISTAS sente muita falta de coisas boas que causa do peixe que estamos consumin-
havia aqui. Antes, pescava 160 quilos do. Hoje, dividimos o alimento do rio
de peixe em uma noite. Agora, nem com o da cidade, afirma Jailson Jacinto
em uma semana a gente consegue Pereira Juruna (36).
VOLTA GRANDE DO XINGU só água do rio e era muito natural; que vi de bom, nossas belezas, nos- marmitex, refrigerante, bolacha e bis-
– Antes da Belo Monte, bebíamos isso. Quero que meus netos vejam o
As comunidades estão consumindo
hoje, bebemos água do poço artesia-
sas, riquezas, mas está tudo acabando, coitos industrializados comprados em
no. Muitas crianças já ficaram doentes conta Maria das Graças. Altamira. Segundo o Distrito de Saúde
por beberem água suja do rio, tiveram Tudo isso é a ponta de um iceberg de Indígena, tornaram-se mais recorren-
Em 2019, trecho do rio será controlado por revezamento de vazão de água com volume pira, diarreia, vômito. Essa água não faz problemas provocados no Xingu com tes os casos de nativos com obesida-
bem abaixo do registrado em período de seca; cultura e tradições indígenas estão se bem para saúde, afirma Natanael Jacinto o descumprimento de condicionantes de, hipertensão arterial e diabetes. Isto
extinguindo, revela a primeira das duas reportagens da série Existe vida no Xingu Pereira Juruna (24), pai de Djawaripa e previstas nas licenças prévias (2010), de porque a caça e a agricultura familiar
professor da comunidade indígena. instalação (2011) e de operação (2015) também estão sendo atacadas pela
Maior obra do Programa de Acelera- que deveriam garantir a proteção da explosão de desmatamento da Amazô-
ção do Crescimento (PAC), a faraônica cultura, das tradições e dos territórios nia na região da usina. Nos primeiros
Belo Monte, cujo estudo se iniciou nos indígenas. Esta última licença chegou cinco anos de construção da hidrelé-
anos 1970, provoca impactos socioam- a ser suspensa pela Justiça, em 2017, trica, 1.793 quilômetros quadrados
bientais em 12 territórios tradicionais por causa de irregularidades em reas- de floresta foram destruídos, segun-
na região do Médio Xingu, onde vivem sentamentos construídos, em Altamira, do o Instituto Imazon. Não há dados
cerca de 4.000 índios. Essas áreas devem cidade mais próxima, pela Norte Ener- mais recentes consolidados, apesar
ser palco de novos conflitos a partir do gia, concessionária da obra, para abri- de ambientalistas observarem que as
próximo ano, quando começará a ser gar famílias retiradas da beira do rio. A motosserras estão derrubando matas
implementado um esquema de reveza- ascensão da usina faz o medo se espa- bem maiores.
mento de vazão de água em nível bem lhar entre as comunidades, já que elas – Belo Monte foi um ataque a nós
abaixo do que é registrado em período apontam a redução de áreas do rio que que vivemos aqui há muitos anos. Temos
de seca. Além disso, comunidades indí- ainda não foram contaminadas. medo de invasões, ameaças. Acho que
Foto: Germano Martiniano territórios, como prevê o artigo 231 de onde tiramos nosso alimento, onde ao peixe, pela água. Como a gente vai
– O rio é o nosso pai e a nossa mãe. É não existirá vida, pois a gente vive igual
genas lutam pela demarcação de seus
da Constituição e o Decreto 5.051, de nós e nossas crianças banhamos. Ele viver se não tiver a água e o peixe, o nos-
2004, que promulga a Convenção 169 é tudo para nós, e estamos perdendo. so alimento? Nossos povos, nossa cultu-
A gente teme pela nossa vida e que, ra, nossas tradições e nossos territórios
da Organização Internacional do Traba-
A guerra pela água do Xingu faz os alimento do rio. Nunca havia pisado em Juruna (32), sempre atenta para que a
CLEOMAR ALMEIDA lho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. daqui a um tempo, não tenha mais o estão morrendo com o rio, diz Laura
índios se mobilizarem em defesa do um hospital antes, agora estou indo por filha dela, Alecksa, não vá brincar no rio.
Enviado especial a Altamira e Volta Grande do Xingu
rio e das espécies. Na aldeia, a dona
de casa Maria das Graças Xipaia (54)
– Minha mãe não deixa mais eu brincar no rio porque tem se desintegraram e tornaram-se mais vulneráveis a doenças cria 250 tracajás em três reservatórios
medo de a barragem soltar água de repente e me afogar, diz crônicas e a ações de madeireiros e grileiros. improvisados. Segundo ela, os que-
Alecksa Adelir Pinto da Silva (8 anos). A Volta Grande do Xingu fica abaixo da barragem, lônios estão morrendo no rio. Como Foto: Germano Martiniano
– Antes, gostava muito de pescar cari, mas está sumindo. concluída em novembro de 2015, e tem extensão de 100 o nível da água diminuiu bastante, a
Só tem um pouquinho no rio, que está diminuindo a água, quilômetros até a casa de força principal da usina, onde espécie não alcança a vegetação para
afirma Djawaripa Arara Pereira Juruna (6). 18 turbinas devem ser instaladas até o final de 2019 para se alimentar. A mulher diz que não
As crianças vivem na aldeia indígena Miratu, uma das que a geração de 11 mil megawatts de potência e atender quer encontrar mais tartarugas podres,
sofrem com a maior escassez de peixe na Volta Grande do a 20,5 milhões de residências, segundo o Ministério de mortas sem ovos por dentro, como
Xingu, a cerca de 90 quilômetros de Altamira, no Sudoeste Minas e Energia (leia reportagem na página 17). Só em vem ocorrendo. Por causa da redução
do Pará. Mesmo em período chuvoso, o cari e o pacu, que uma parte da área conhecida como trecho seco, moram da vazão da água, também já foram
mais movimentam a pesca como principal fonte de renda e ao menos 100 famílias nas aldeias Miratu, Paquiçamba, encontrados mortos pacus e curimatãs,
sobrevivência na região, estão desaparecendo, assim como Furo Seco e Terrawãngã, que agonizam por causa da com ovas secas em suas barrigas, já
os tracajás. Nos últimos anos, as comunidades foram proibi- diminuição da vazão natural de até 80% na região. É o que a desova entrou em desequilíbrio.
das de acessar algumas áreas do rio desde que o fluxo dele que aponta o estudo Xingu, o rio que pulsa em nós, um – Trouxe os tracajás que encontrei
passou a ser controlado pela barragem da Usina Hidrelétrica monitoramento de impactos da Belo Monte lançado este no rio morrendo porque não estavam
de Belo Monte, a terceira maior do mundo. Após serem asse- ano e realizado pelo povo Juruna da aldeia Miratu, em conseguindo alcançar as ramas que
diados até com dinheiro pelo empreendimento, os nativos parceria com o Instituto Socioambiental (ISA). precisavam comer no leito. A gente Preservação da espécie: Maria das Graças Xipaia cria tracajás em poços improvisados na aldeia Miratu