A crise fiscal explode diante de nossos olhos e a cada dia novos riscos aparecem
Faz parte da nossa cultura buscar sempre um lado positivo em tudo. Temos baixa tolerância a más notícias. Não é incomum os noticiários na televisão terminarem a edição com algum assunto ameno, provavelmente para não perder audiência.
É possível que esse traço cultural atrapalhe o enfrentamento de problemas. Ao negá-los ou atenuá-los, a busca por soluções tende a ser protelada. A reforma da Previdência saiu porque paramos de dourar a pílula.
O momento atual pede o enfrentamento da dura realidade fiscal, que se agravou. A recomendação de muitos de fazer tudo que fosse possível na pandemia, sem se preocupar com a qualidade e calibragem dos gastos, foi imprudente. Gastamos muito em comparação aos emergentes e não tão bem, como já discutido em outro artigo.
A PEC do orçamento de guerra poderia ter incluído a possibilidade de redução de jornada e vencimentos do funcionalismo, que tem estabilidade. De acordo com o IBGE, foi o grupo que mais reduziu as horas trabalhadas na pandemia. Em julho e agosto, elas foram em média 75% do habitual, ante 85% no setor privado e 81% nos informais.
Foram transferidos em torno de R$125 bilhões aos Estados, entre recursos diretos e suspensão de dívidas. No entanto, as contrapartidas exigidas foram tímidas. O congelamento de salários do funcionalismo por um ano e meio é muito pouco, até porque muitos Estados já haviam feito reajustes este ano.
A pandemia anestesiou os problemas nas finanças dos Estados, pois os pagamentos de serviço da dívida à União foram suspensos, o auxílio emergencial puxou a volta da arrecadação (+5,5% em setembro na variação anual) e a transferência de recursos da União ajudou a honrar a folha. Os problemas voltam todos em 2021.
Não por outra razão, a Câmara está propondo um novo projeto de socorro a Estados e municípios. Será crucial inserir boas contrapartidas e garantir sua manutenção, diferentemente do que ocorreu no acordo de 2016, quando a maioria foi derrubada no Congresso, como a suspensão de ajustes salariais e a redução de incentivos tributários (representam em média 17% da receita do ICMS). Ficou apenas o estabelecimento de uma regra do teto por dois anos, sem que instrumentos para seu cumprimento fossem previstos. O teto não foi atendido por 11 Estados e outros 9 não assinaram o aditivo. Para inglês ver?
As regras atuais que regem os orçamentos estaduais dificultam e até inviabilizam o cumprimento do teto, como aponta Cristiane Alkmin, pois geram crescimento automático das despesas obrigatórias. É o caso dos gastos com a folha de ativos e inativos, as vinculações de gastos de saúde e educação à receita corrente líquida (e não à variação do IPCA, que corrige o teto) e o piso do magistério (204% de ajuste desde 2009 ante uma inflação de 83%).
As contrapartidas são essenciais, portanto, inclusive para fortalecer politicamente o ajuste fiscal de governadores. Caso contrário, não sairemos da armadilha de frequentemente renegociar as dívidas de Estados.
A crise fiscal explode diante de nossos olhos e a cada dia novos riscos aparecem, como os crescentes precatórios, que afetam as 3 esferas de governo.
A reação dos mercados ao risco fiscal em alta – só não é maior por conta do teto de gastos – é didática para alertar a classe política. Ajuda a conter retrocessos e equívocos, como na proposta de adiar o pagamento de precatórios para financiar o Renda Cidadã.
Porém, não se pode depender do mau humor dos mercados para avançar com a agenda fiscal. Os investidores não costumam mapear bem os riscos. Tanto é assim que se encantaram com as promessas liberais de campanha. Muitas vezes, as reviravoltas no mercado acabam ocorrendo quando o quadro já é muito grave, como em 2015. Além disso, a pressão dos mercados não faz milagre quando não há plano estruturado a entregar.
Quando o Executivo está desarticulado, prevalecem os interesses difusos do Congresso. O primeiro antídoto contra isso é não negar os problemas.
*Consultora e doutora em economia pela USP