Precisamos, desde já, de um plano de contenção de despesas obrigatórias
Disciplina fiscal significa um país não gerar indefinidamente rombos orçamentários e aumento da dívida pública como proporção do PIB. Caso contrário, cedo ou tarde, vai enfrentar o revide dos credores: inicialmente demandando taxas de juros crescentes e, no limite, desistindo de financiar o governo, por medo de calote. Irão buscar investimentos mais seguros, inclusive fora do País. O resultado é o aumento da inflação.
O espaço para governos esticarem a corda depende da crença dos investidores quanto à sua capacidade e disposição de fazer o ajuste das contas públicas, em algum momento futuro. Dois fatores são chave para essa expectativa: a capacidade do país de crescer de forma sustentada, o que é um selo de qualidade da ação estatal, e a credibilidade do governo, construída pelo respeito a compromissos feitos.
Países ricos conseguem se endividar mais. A dívida pública das economias avançadas estava na média em 104% do PIB em 2018 ante 50% nos emergentes. Em 2000, essas cifras eram 83% e 45%, respectivamente.
Para ajudar na construção de credibilidade, muitos governos adotam regras fiscais para reger as contas públicas. São compromissos com a disciplina fiscal previstos em lei. É comum em países com meta de inflação, pois são regras que se reforçam mutuamente.
As regras precisam ser duradouras para cumprirem seu papel. Não podem ser facilmente contornadas ou alteradas. Já se observam no mercado financeiro as consequências do flerte com a flexibilização da regra do teto, aprovada há menos de quatro anos. A elevada volatilidade de preços de ativos, inclusive da taxa de câmbio, ameaça a recuperação da economia. Além disso, ocorre um encurtamento do perfil da dívida pública, tornando o ambiente mais propenso à saída de recursos.
As regras não podem ser frouxas, deixando de fora muitos itens de despesa, como alguns propõem – a regra do teto já exclui o Fundeb e a capitalização de estatais não dependentes do Tesouro. Por outro lado, precisam ser críveis ou factíveis. Alguns analistas apontam que, por conta da pandemia, a regra do teto tornou-se impraticável diante das demandas por gastos com saúde e socorro de pessoas e empresas, sendo necessário ajustá-la. Vejamos.
A regra já embute uma “cláusula de escape” para o período de calamidade pública, liberando as despesas associadas ao combate dos efeitos da covid-19. Seria então o caso de estendê-lo por mais alguns meses, para autorizar despesas transitórias? O cuidado aqui é haver justificativa forte o suficiente para os créditos extraordinários e a garantia de seu bom uso. Além disso, convém esgotar outras possibilidades, como criar espaço no Orçamento pela redução temporária da folha do funcionalismo, conforme proposto na PEC emergencial, abandonada.
Uma flexibilização do teto para aumentar despesas permanentes seria mais arriscado. Mesmo medidas meritórias, como a Renda Cidadã, deveriam substituir as muitas políticas públicas equivocadas. Nesse contexto, é indefensável a tímida proposta de reforma administrativa, que além de excluir importantes carreiras do funcionalismo, não afeta os atuais servidores. O mesmo vale para a contrariedade do presidente com o remanejamento de recursos de outras políticas sociais proposto pelo time econômico.
A pandemia aumentou a necessidade de reformas. O teto, mesmo se respeitado, não eliminará o rombo fiscal por muitos anos. Flexibilizá-lo significaria cutucar o investidor, já desconfiado, com vara curta. Dilma fez isso em 2015. Deu no que deu.
Na melhor das hipóteses, o governo estaria aumentando a probabilidade de um ajuste forçado das contas públicas por meio de sensível elevação da carga tributária. Um cenário “volta ao passado” penalizaria ainda mais a frágil economia.
Os investidores poderão financiar a dívida pública elevada e crescente, e será possível evitar maior carga tributária e instabilidade econômica. Mas desde que haja plano consistente de contenção de despesas obrigatórias de forma a não apagar a chama já tão fraca da disciplina fiscal.