Bolsonaro escorregou feio na falsa disputa entre saúde da economia e saúde das pessoas
No Brasil, a ideia de morrer pela coletividade é um conceito distante. A complacência com a morte e a violência é o que expressa melhor um traço da nossa sociedade – basta observar como nós, brasileiros, conseguimos conviver com taxas horrendas de criminalidade há tanto tempo. Enquanto nos orgulhamos e exaltamos a nossa cordialidade, bom humor e alegria de viver.
Com decisiva ajuda do presidente Jair Bolsonaro, mas não só dele, o debate sobre a crise do coronavírus e suas consequências aqui descambou para um ácido maniqueísmo entre saúde das pessoas versus saúde da economia. Debate que, no fundo, mal encobre uma falsa dicotomia. Não dá para separar uma coisa da outra.
No extremo lógico do argumento abraçado por Bolsonaro vamos chegar a uma questão ética que ele provavelmente nem percebe, e que está contida na expressão “darwinismo social”. Simplificando bastante, significa tolerar que os mais frágeis sucumbam, pois assim determinam as “leis” da evolução social – além da noção (pouco difundida na nossa sociedade) do “bem comum”.
Bolsonaro e a defesa que faz da “saúde da economia” (simploriamente, ele deixou-se identificar com um lado na falsa dicotomia) espelham o fato de a sociedade brasileira tolerar a convivência com brutalidade (e desigualdade e miséria), mas, como cálculo político, traduz um perigoso erro de leitura da realidade. Pois, em política, mesmo com nossas notórias hipocrisias, ninguém conseguirá sobreviver associado à noção de que os mais frágeis precisam perecer pelo bem comum da economia.
Bolsonaro não é um jogador de xadrez e, por isso, é difícil assumir que seus atos sejam uma sequência de lances. Ele é um ser político intuitivo que reage a estímulos dados por um grupo restrito de “conselheiros” obcecados por posturas ideológicas que pouco passam de fantasias perigosas, à paranoia das “conspirações” e ao cálculo prático de quais vantagens políticas se oferecem no prazo mais imediato. Além de copiar o deus Trump, que viu os índices de popularidade subirem quando começou a falar que as pessoas querem voltar a trabalhar.
No caso da crise do coronavírus, ele a enxerga como uma ameaça pessoal trazida pela deterioração provável (só se discute o tamanho) da economia e, consequentemente, dos seus índices de aprovação e chances eleitorais. Ocorre que, nessa competição para superar adversários eleitorais reais ou imaginários – governadores de Estado –, ele abriu uma fissura institucional de consequências políticas difíceis de serem antecipadas (só se discute o tamanho).
É o fato de que passaram a existir várias autoridades no enfrentamento da crise, em vários níveis da Federação. Sem que exista – além da formalização de comitês vários – uma liderança central que seria essencial para enfrentar o que vem por aí, em qualquer sentido. Ao contrário do que parece supor Bolsonaro, o público dificilmente fará uma distinção entre quem disse o quê neste momento sobre como combater a crise.
“Quem tinha razão” vai importar muito pouco lá na frente, pois o País – parte-me o coração ter de dizer isso – já entrou na dupla catástrofe de saúde pública e de economia devastada. A questão da liderança surge mais uma vez como um peso negativo no enfrentamento de nossos problemas – faltaram lideranças consequentes em todos os graves episódios e, sobretudo, lideranças com visões além dos seus interesses políticos mais próximos.
Terminei o texto da semana passada afirmando que o coronavírus era uma ameaça grave para Jair Bolsonaro. Entendido, como ele foi, como uma liderança surgida numa onda disruptiva, a onda de 2018. Não calculava, porém, que a crise pudesse diminuí-lo com tanta rapidez. É o que acontece, como se diz em gíria, quando alguém se empenha em dar tanta sopa para o azar.