É a pobreza de milhões de pessoas, agravada pela crise do vírus, que condiciona as agendas
O coronavírus colocou de novo no centro do nosso vocabulário uma palavra que a gente ouve há gerações e não consegue se livrar dela: miséria. O palavreado inócuo de sucessivos governos petistas alardeando exitosa “inclusão social” e “combate à pobreza” já havia sido desmentido pelos números antes mesmo da atual tripla crise política, econômica e de saúde pública – e Lula foi beneficiado por um ciclo de bonança internacional que não se repetirá por gerações.
No meio da pior crise de nossa memória o atual governo está demorando (assim como demorou para se adaptar ao jogo político) para entender que miséria é o fator que condicionará todos os cálculos políticos e estratégicos. Miséria é o que já jogou para o alto o caminho de ação no qual Paulo Guedes insistia ainda naquela semana de março na qual as medidas de emergência foram decretadas. A saber: o de que reformas estruturantes (Previdência, tributária, administrativa, de Estado, etc) produziriam dentro de um horizonte político conveniente, o de 2022, o “destravamento” da economia e consequente combate sustentável da miséria.
Ocorre que ela aumentou antes, e inverteu prioridades. A miséria está sendo agravada por uma crise que evidenciou de forma ainda mais brutal o grau de informalidade e vulnerabilidade de vastas camadas da nossa população, especialmente nas periferias das grandes capitais. Nesse contexto de pobreza gritante e crescente pode-se chamar o conjunto de parlamentares do que se quiser, menos de bobos, e a resposta que articularam até aqui (a de escancarar os cofres públicos) é o reconhecimento político da gravidade de uma situação social que ainda deve piorar antes de talvez melhorar, e não se sabe quando.
Em outras palavras, o dilema imposto ao governo pela miséria do País é como equilibrar o altíssimo custo político de parecer produzir ajuda insuficiente para milhões de necessitados versus o altíssimo custo fiscal de manter programas de renda básica. Diante da claque com que “dialoga” entrando ou saindo todo dia do Alvorada, Jair Bolsonaro já resumiu o problema para o qual ninguém tem solução. “Não tenho dinheiro para seguir nisso muito tempo”, afirmou.
Aproveitou também para repetir que a “culpa” é de governadores, do STF, de “terroristas” manifestantes, da imprensa ou, mais recentemente, da OMS, que estaria, por motivos políticos, interessada em “quebrar o Brasil” (desalojá-lo do poder, entende-se). Bolsonaro evidentemente aprecia os benefícios político-eleitorais trazidos por programas de distribuição de dinheiro, conforme demonstram as pesquisas. Porém, reconhece que não há mais espaço fiscal para criação de despesas obrigatórias (como prestação de benefícios desse tipo) – a não ser que se arrisque levar as contas públicas à insolvência.
Na busca desenfreada por uma resposta ao “que fazer” surgem as propostas lacradoras de internet, como a de reduzir salários nos três Poderes. É um poderoso símbolo, mas no mundo dos números ainda insuficiente para combater a miséria. Ou a de colocar na frente de qualquer outra reforma a do sistema tributário, que ajudasse, pela simplificação, a diminuir a informalidade – portanto, ampliando o alcance de benefícios sociais. Como é fartamente sabido, o grande obstáculo a qualquer reforma tributária é a ausência de lideranças políticas capazes de refazer o pacto federativo, fora descascar o abacaxi de equilibrar o jogo de interesses de múltiplos grupos econômicos e corporativistas.
Todos que lidam com história de campanhas políticas lembram da célebre frase de marqueteiros americanos quando tratavam de convencer um candidato à presidência (Bill Clinton) a manter o foco. “It’s the economy, stupid.” No Brasil a miséria impõe outra prioridade. “It’s the social, stupid.” É simplesmente não deixar pessoas morrerem de fome. E a gente achava que já tinha deixado isso para trás.