Na prática, o governo desistiu de controlar despesas via reforma administrativa
Talvez por sentir que não tem forças políticas para uma briga difícil. Por falta de apetite para enfrentar uma corporação organizada e que sabe defender seus interesses, direitos ou privilégios adquiridos (cada um nomeia como quiser). Ou ambos. Mas o fato é que a principal luta política de Bolsonaro foi abandonada.
O governo prometeu entregar hoje ao Congresso uma reforma administrativa que trata apenas dos servidores de amanhã, e não toca no sistema de interesses, direitos ou privilégios adquiridos (nomeie como quiser) atuais. Na prática, não vai pegar de frente a questão do controle do crescimento de despesas públicas, nas quais as folhas de pagamento do funcionalismo figuram com tanto destaque.
Chega a ser fascinante observar como o atual governo, que ia reformar o Estado e mudar o Brasil, trata obstáculos formidáveis no seu caminho como se o tempo fosse resolver tudo. Nenhum governo recente se revelou capaz (e este segue do mesmo jeito) de controlar o crescimento real de gastos públicos. Nenhum conseguiu escapar (e este vai na mesma toada) de um orçamento ridiculamente engessado: 94% do Orçamento são despesas obrigatórias.
Um consenso abrangente reina entre academia, economistas, cientistas políticos, parlamentares experientes e o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes. É sobre o tamanho do imbróglio. Arrumar dinheiro para gastar depende de reforma tributária, que depende de um pacto federativo para acomodar todos os interesses contraditórios, que depende de uma reforma tributária que enfrente renúncias e isenções, que depende de uma reforma administrativa que controle despesas públicas e tudo isso depende de vontade e lideranças políticas.
É igualmente notável a ausência de uma resposta clara e direta quando se pergunta por onde e como o governo quer atacar a questão. Seu eixo estratégico – a reforma administrativa e o pacto federativo tinham sido declarados como tais há quase dois anos – se perdeu por fatores que o governo controlou ou minorou apenas parcialmente (a crise de saúde pública e a recessão) aliados ao ambiente político que colocou Bolsonaro claramente na defensiva.
É evidente que o impulso inicial por reformas, se autêntico alguma vez, substituído foi pela necessidade de sobrevivência política. Por sua vez, subordinada às questões jurídicas e policiais que afetam o clã Bolsonaro, mas, também, pela urgência trazida pela imperiosa obrigação de acudir milhões de necessitados. Não há qualquer outra prioridade: sobreviver para se reeleger.
O presidente reconhece que não tem recursos para pagar indefinidamente um coronavoucher que chegou a custar R$ 50 bilhões por mês. Que não está disposto a topar uma briga para mexer em interesses, direitos ou privilégios adquiridos, ou seja, tem graves dificuldades para reduzir aumento de gastos. E que ainda aguarda uma “fórmula”, a cargo da Economia, para compensar perda de arrecadação de um lado com necessidade de gastar por outro.
Se havia nesse governo eleito para “mudar o Brasil” uma visão de longo prazo, a crise atual a destruiu. É possível identificar no cálculo político do presidente a esperança de que a tal “recuperação em V” propalada por Guedes (que até aqui os números desmentem), impulsionada por marco do saneamento, agronegócio, lei do gás e liquidez internacional, abra o espaço fiscal para os programas de renda e de crescimento.
Mas foi jogando para frente, para o próximo mês, para a próxima semana, para o próximo dia, o enfrentamento das questões fundamentais que Bolsonaro caiu na situação atual, da qual não tem opções fáceis de saída do ponto de vista político nem econômico (como “salvar” o PIB distribuindo ajuda emergencial).
Pode-se atribuir a Bolsonaro muitas coisas, mas cinismo não figura no alto da lista. Talvez isso dificulte a ele entender que são efêmeras a lealdade política de partidos do Centrão e a popularidade compradas com emendas, cargos e ajuda emergencial.