Nossa sociedade se acostumou a acomodar interesses pendurando a conta nos cofres públicos
É difícil e pode causar indisposição, mas, se for possível ignorar aspectos morais quando se registra o perdão de dívidas concedido pelos deputados a igrejas, percebe-se que o ocorrido nada tem de anormal. Ao contrário: é o jeitão característico da nossa sociedade, acostumada a acomodar interesses setoriais pendurando a conta nos cofres públicos, quer dizer, em quem paga impostos.
As igrejas compõem um desses “interesses setoriais” e constituíram-se nas últimas quatro décadas num lucrativo negócio graças a uma profunda transformação cultural (associada à perda de valores tradicionais e ao recuo da Igreja Católica, mas este não é o objeto deste texto). Desenvolveram-se também como importantes fatores da política, não apenas pela capilaridade (base de seu poder econômico), mas, principalmente, por terem se tornado muito relevantes na “guerra cultural”, que é uma luta política.
É bastante óbvio que o poder político e econômico explica a maior ou menor capacidade de “interesses setoriais” de obter a acomodação que pretendem. Excelente exemplo está no debate sobre a reforma tributária, um verdadeiro tratado antropológico sobre a realidade brasileira, na qual o privado tem predominância sobre o público. Existe uma espécie de consenso social segundo o qual esse estado de coisas, do ponto de vista moral inclusive, surge como perfeitamente adequado.
A essência desse debate, em meio ao enorme sufoco fiscal, é estabelecer quais interesses setoriais terão de renunciar ao que consideram seus direitos adquiridos. A desoneração de folhas de pagamento, por exemplo, abrange pelo menos 17 setores ou segmentos da economia, que já consideram essa renúncia como uma espécie de “direito”. O mesmo ocorre com incentivos, proteções, subsídios a juros, manutenção de programas especiais de fomento. A força política de cada setor interessado criou um equilíbrio na estagnação, pois o resultado geral (entendido como capacidade de expansão da economia do País) acaba sendo medíocre, mas cada um se defende bem no seu pedaço.
Pode-se seguir adiante nesse raciocínio e ampliá-lo para a questão da reforma do Estado via reorganização do funcionalismo público, cujo peso nas contas públicas é célebre. Os “interesses setoriais” nesse caso estão na elite dos servidores do Estado, naquilo que os sociólogos da velha escola chamariam de “estamentos burocráticos” com inigualável peso nas instituições e formidável capacidade de defender o que consideram “seu”. Não há lideranças capazes no momento de compor todos os interesses ou de fazê-los convergir para qualquer coisa que se possa chamar de “bem comum”.
Não deixa de ser curioso notar que a defesa do perdão das dívidas das igrejas com a União alega que a Receita Federal teria se colocado acima da Constituição e desprezado a imunidade que essas entidades desfrutam quanto ao pagamento de impostos (mas não de contribuições como a previdenciária). Implícita está a noção de que os agentes do Estado brasileiro se comportam de forma autônoma, isto é, eles fazem as leis. Tenham ou não razão em seu pleito (é evidente quem, neste caso, não tem), os representantes das igrejas apenas engrossam um coro muito amplo.
Há mais um paralelo irônico com a mais recente fase da Operação Lava Jato, voltada contra escritórios de advocacia que, segundo a denúncia oferecida pelo Ministério Público, recebiam dinheiro do Sistema S (sustentado por dinheiro público) para “azeitar” decisões em várias instâncias de órgãos de controle e do Judiciário relativas a interesses setoriais. Quando se fala em corrupção sistêmica no Brasil, na verdade está se falando de uma forma de acomodação.
À qual, é triste ter de dizer isso, estamos acostumados.