Não lhe incumbe obstar ou diferir a apreciação das denúncias por crime de responsabilidade
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados, em seu artigo 218, delega ao seu presidente a função de deferir ou indeferir o recebimento de denúncias por crimes de responsabilidade eventualmente cometidos pelo presidente da República, pelo vice-presidente ou por ministros de Estado.
Em caso de deferimento, a denúncia será lida no expediente da sessão seguinte e despachada para a comissão especial eleita para esse fim, da qual participam, proporcionalmente, representantes de todos os partidos com representação na Casa. Em caso de indeferimento, cabe recurso ao plenário.
A norma não fixa prazo para que sejam adotadas quaisquer dessas duas providências, mas o artigo 15 da Lei n.º 1.079/1950 esclarece que a denúncia só pode ser recebida enquanto o denunciado não tiver deixado definitivamente o cargo.
Como é permitido a qualquer cidadão apresentar a denúncia, a faculdade conferida exclusivamente ao presidente da Câmara dos Deputados tem sua razão de ser, servindo como um primeiro filtro para evitar que acusações absolutamente esdrúxulas e desprovidas de adequação tenham seguimento automático, paralisando o Legislativo e trazendo instabilidade à sociedade.
Nesses casos, o indeferimento não traz ônus político, dada a patente teratologia da denúncia. Ainda que seja possível eventual recurso ao plenário, a votação pode ser realizada com celeridade e sem maiores solavancos para a estabilidade institucional.
Todavia, quando tem bons fundamentos, o deferimento ou indeferimento da denúncia obriga o presidente da Câmara a tomar posição, o que implica considerável gravame político, razão pela qual pedidos podem permanecer intocados até que o denunciado deixe o cargo e a denúncia não possa mais ser recebida.
Acontece que a inexistência de prazo legal não deve ser interpretada como uma licença para que o presidente da Câmara escolha o momento político que lhe pareça mais adequado para decidir pelo recebimento ou não da denúncia. Tal conduta apenas indica omissão e complacência. Se a denúncia não é descabida a ponto de ser indeferida de plano, deve ser admitida para permitir que a comissão especial exerça seu papel institucional.
É dessa comissão, em suma, a função de emitir um primeiro parecer sobre se a denúncia deve ser ou não julgada objeto de deliberação. Em sendo, abre-se prazo para que o denunciado conteste o parecer. Ao fim, após a instrução e produção de provas, a comissão especial profere novo parecer, dessa vez sobre a procedência ou improcedência da denúncia, que será levado a votação pelo plenário da Câmara dos Deputados, podendo acarretar no encaminhamento da acusação por crime de responsabilidade para julgamento pelo Senado Federal, com o afastamento do denunciado de seu cargo.
Somente assim se permite que os representantes do povo deliberem a respeito da conduta denunciada, expondo publicamente suas posições e prestando contas aos seus eleitores, pouco importando se a denúncia tem condições políticas para ser ou não admitida.
Ainda que a conjuntura política tenda para determinado resultado, é preciso que sucessivas denúncias sejam analisadas, caso a caso, arcando o denunciado com eventual desgaste político decorrente de suas ações, mesmo que como mera medida dissuasória, para que repense a adequação de sua conduta.
Não importa, portanto, se a denúncia tem chances de sucesso naquele momento. Não importa se é melhor que o ambiente político aqueça ou que a denúncia arrefeça. Independentemente disso, é preciso que seja permitida sua discussão e apreciação. É preciso que os deputados que apreciarão a denúncia também enfrentem as consequências de suas decisões, especialmente perante a opinião pública. É também fundamental que o denunciado possa responder no foro adequado pelas acusações que lhe forem formuladas, ainda que seja para demonstrar sua inocência.
Por outro lado, é necessário que denúncias inconsistentes sejam objeto de indeferimento, permitindo a apreciação de eventual recurso pelo plenário, afastando a possibilidade de utilização para expedientes obscuros, quando politicamente conveniente.
A ausência de decisão do presidente da Câmara acerca do recebimento da denúncia, ainda que se admita sua legalidade, transfere para ele, exclusivamente, o ônus moral de impedir a responsabilização do denunciado, aproximando-o da condescendência. A ausência de decisão acerca do indeferimento revela oportunismo.
Ao deixar de decidir, o presidente da Câmara dos Deputados furta para si as prerrogativas da comissão especial e do plenário. Ao deferir ou indeferir, afasta de si o ônus de sua omissão, dando efetividade à sua missão institucional, repassando à comissão especial e ao plenário o encargo que efetivamente lhes cabe, de aceitar ou rejeitar a denúncia.
Portanto, não incumbe ao presidente da Câmara obstar ou diferir a apreciação das denúncias por crime de responsabilidade, sob pena de deixar como legado histórico as marcas de sua omissão.