O principal esforço até agora não consistiu em se mobilizar para evitar as mortes durante a pandemia, mas em banalizá-las
Talvez fosse o caso de começar lembrando que a substância ética de um povo é definida através da maneira com que ele lida com a morte. Este é um tema maior presente entre os gregos, a saber, como uma sociedade se destrói a partir do momento em que ela não dá aos mortos o direito ao luto. Pois o luto mobiliza questões vinculadas à memória, à universalidade, ao reconhecimento, à suspensão do tempo e ao intolerável. Se uma das maiores tragédias que os gregos nos legaram ―Antígona―, é exatamente sobre a defesa incondicional do direito ao luto, mesmo para o “inimigo do Estado”, era porque ela expressava a consciência tácita de que a banalização do apagamento dos corpos sem vida representava o caminho mais seguro para dissolução da própria comunidade. Estes dois pontos estão ligados de forma indissolúvel: o destino dos vivos e o destino dos mortos, o governo dos vivos e o governo dos mortos.
Para uma sociedade como a brasileira, fundada no binômio genocídio/esquecimento, sociedade construída sobre os escombros do genocídio indígena e negro, lembrar da força política do luto é uma operação decisiva. Nós fomos formados a partir da fantasia originária da “tabula rasa”. Aqui, não haveria povos com grandes estruturas estatais, como os maias, astecas e incas. Toda tomada de posse seria processo civilizatório tendo em vista retirar essa terra de seus arcaísmos, o arcaísmo das sociedades sem Estado. Por isto, o genocídio indígena não seria genocídio algum, apenas a marcha violenta, porém necessária, do desenvolvimento histórico. No Brasil, “desenvolvimento” significa uma forma de “desaparecimento”, de apagamento. Uma sociedade que começa desta forma sem nunca conseguir olhar para trás e recuperar aquilo que foi destroçado, só pode terminar como catástrofe.
Pois essa indiferença bruta do esquecimento é um verdadeiro projeto de governo. Governar é gerir circuitos de afetos. Só assim é possível definir o que visível e invisível, sensível e insensível, perceptível e imperceptível. E controlar os regimes de sensibilidade, de visibilidade e percepção é controlar o fundamento daquilo que pode afetar a vida social. É definir a velocidade das urgências, a determinação do tolerável, estabelecer quais conflitos deverão ser reconhecidos e quais não deverão.
Neste sentido, este cozinhar os afetos sociais no fogo brando da indiferença é a base de toda uma engenharia social. E não há fundamento mais forte da produção da indiferença do que a indiferença à morte. Lembremos das condições libidinais para que a tese da banalização do mal pudesse funcionar. Era necessário que os carrascos nazistas fossem capazes de naturalizar a desafecção. Só assim o assassinato em massa poderia se transformar em um problema de logística. Só assim ele poderia se tornar um problema de como os trens chegarão aos fornos, em quanto tempo, com quanto custo, estejam eles transportando pessoas a serem eliminadas ou mercadorias a serem entregues.
Vale a pena lembrar isto porque o verdadeiro projeto político com força transformadora, aquilo que deveria nos unir, é a luta por uma mutação de afetos que passe pela compreensão da desafecção como base de nossa verdadeira miséria. Temos, até o momento, mais de 60.000 pessoas mortas pela pandemia, isto se acreditarmos em números subnotificados. Mas o principal esforço até agora não consistiu em mobilizar os esforços e riquezas do país para evitar as mortes. O principal esforço consistiu em banalizá-las. Afinal, não é verdade que morre todo o ano mais de 60.000 pessoas por violência neste país? Qual a razão então para todo esse alarmismo? Como se os números da violência não fossem por si alarmantes, nos provocando indignação a todo momento. Números estes, diga-se de passagem, que descrevem, principalmente, a violência policial: peça maior da gestão social desse país.
Mas notem como essa desafecção é peça fundamental para o tipo de laboratório que o Brasil se tornou: um laboratório mundial para o neoliberalismo autoritário. Porque esse programa econômico que se impõe a nós, com ou sem pandemia, tem uma economia libidinal que lhe e própria. Para ele funcionar, é necessário que a sociedade exploda toda possibilidade de solidariedade genérica, essa solidariedade, que obriga a realização social de princípios estritos de igualdade e redistribuição. Entre nós, a crítica do Estado corrupto aparece apenas como exigência de dessolidarização final. Não se trata de exigir do Estado que ele se volte à defesa do bem comum, mas que ele desapareça de vez para que qualquer obrigação de solidariedade não tenha mais voz. Se a sociedade implode qualquer forma transversal de solidariedade, então a via estará aberta para o retorno final à acumulação primitiva.
A solidariedade, desde o direito romano, é um tipo de obrigação contraída com vários na qual um pode quitar a dívida de todos. Ela é um sistema de obrigação na qual a ação de um tem o efeito da ação de todos, o que explicita sua natureza radicalmente implicativa. Neste sentido, ela traz a ideia de um corpo social que se organiza sob as bases do mutualismo. Um mutualismo que tem força transformadora porque se trata de compreender como dependo de pessoas que não se parecem comigo, que não tem minha identidade, que não fazem parte de meu lugar.
Por isto, a verdadeira solidariedade nada tem a ver com empatia. Temos uma tendência, muitas vezes, de psicologizar o campo social porque não queremos ver a força real de conceitos eminentemente políticos. Empatia é um tipo de implicação limitada: tenho empatia por você, o que não significa que terei empatia por outro. Há traços seus que provocam minha empatia, enquanto em outro é a repulsa que fala mais alto. Já a solidariedade não pressupõe empatia alguma pois não é um modo de relação entre sujeitos, mas entre o sujeito e o corpo social. Posso não ter empatia alguma por você, o que não implica que serei incapaz de ter solidariedade por ti. Pois a solidariedade é o regime de comprometimento com o corpo social do qual fazemos parte. É a compreensão de que o corpo social defende todos os que dele fazem parte, sem perguntar-se pelos sentimentos particulares de um para com os outros. Sua força transformadora vem exatamente daí, a saber, da sua capacidade de criar mutualidade entre diferenças.
Seria bom lembrarmos disto a fim de se perguntar sobre as razões pelas quais assistimos, nestes últimos meses, a um verdadeiro cortejo macabro de expressões de desprezo pelos mortos, de exercício de desafecção e indiferença. Como disse anteriormente, isto é uma forma de governo que nada tem de gratuito. Foi assim que este país foi criado. Esse é seu eixo central. Por isto, não se trata de recuperar esse país marcado em seu seio pela brutalidade da violência sem voz. Trata-se de terminar com ele, de uma vez por todas. O país no qual podemos habitar ainda não existe. Seria mais fácil se assumíssemos, de uma vez por todas, que precisaremos criá-lo. E o primeiro passo para criá-lo é se recusar a aceitar mais um genocídio.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo