O documentarista Vladimir Carvalho lembra da visita a Brasília que o cineasta italiano, Bernardo Bertolucci fez durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 1994
Os próceres da hora, Gustavo Dahl e Arnaldo Carrilho, andavam pelos cantos do hotel JK, sede do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (1994), em cochichos e articulações de bastidores, tramando não se sabia bem o quê. Só eles sabiam o caminho das suítes ocupadas pela turma que acompanhava Bernardo Bertolucci e este até ali não tinha dado as caras, mergulhado que estava no mistério que costuma envolver as vésperas da aparição das grandes vedetes internacionais.
Só Joel Barcelos, que nadava de braçadas na onda de protagonista do longa-metragem Trópicos, de Gianni Amico, escalado para encerrar o Festival, estava por dentro e montava guarda cerrada à porta, tornando inexpugnável o acesso dos coleguinhas da imprensa, completando o quadro de “segregação”.
Até onde me lembro, creio que o convite inicial da mostra brasiliense se destinava a Gianni Amico, juntamente com toda a sua filmografia, incluindo Trópicos, uma espécie de versão livre de Vidas Secas num lance entre Nelson Pereira dos Santos e Graciliano Ramos. A sugestão de acrescentar o grande Bertolucci foi trama de Gustavo Dahl, então na Embrafilme, íntimo dos italianos desde o tempo em que foram colegas nos cursos do Centro Experimentali de Cinema em Roma.
Luizinha Dornas, à frente da Fundação Cultural do DF (FCDF), com o ardor que lhe caracteriza, logo assinou embaixo da sugestão e o resultado foi a vinda da caravana Bertolucci a Brasília, composta de sua mulher, a também cineasta Clare People, dois assistentes do diretor, um produtor, cujo nome me escapa, mais a turma de Gianni Amico, com sua equipe e seus atores, sua mulher, a sempre presente Fiorela, com o filho Olmo, assim batizado para homenagear o amigo Bernardo, com o nome do personagem principal do seu célebre filme 1900, vivido por Gérard Depardieu. Bertolucci era seu padrinho e estavam todos em família ao melhor estilo italiano. Os simples mortais, cinéfilos ou não, espiavam de longe, ansiosos, enquanto os garçons circulavam levando bandejas para as refeições em privado. Era esse o clima…
Enquanto isso, não longe dali, numa mansão ocupada no Lago Sul, mal descansado da campanha para presidência, ganha no primeiro turno, Fernando Henrique Cardoso reunia-se com sua equipe de transição, transformando aquele endereço chique em caminho de formigas de políticos. Aproveitando-se competentemente da oportunidade, o embaixador Carrilho, velho e fraternal amigo do Cinema Novo, faz gestões credenciado pelo Itaramaty, recebe o aval de FHC e leva então, com Gustavo Dahl, um verdadeiro séquito de cineastas, técnicos e artistas que se encontravam no Festival.
Um ônibus lotado parte em grande folia do hotel JK, ao mesmo tempo em que segue um limousine, levando o grande visitante que acede após as instâncias dos seus amigos brasileiros para um encontro com o presidente recém-eleito. Ocasião melhor não poderia acontecer para mais uma vez levarmos as chamadas bandeiras de nosso sofrido cinema à consideração dos poderes públicos. E assim foi!
A cena, eu me lembro muito bem: FHC e Bertolucci sentados lado a lado em confortáveis poltronas, cercados pelos acólitos credenciados, Dahl, Carrilho e a malta toda em volta. O animado papo foi em francês, mas dava bem para entender o diálogo e o italiano foi extraordinário, cumpriu a risca o seu papel e fez chover elogios a Glauber, a Saraceni, a Joaquim Pedro, ao Leon Hirszman, a Cacá e, logicamente, ao Barretão, nosso lídimo comandante.
Fez a festa e era tudo que queríamos ouvir; e ao levantarem-se os dois, na despedida, o novo presidente confraternizou conosco, abraçando os nossos líderes efusivamente. Só faltava o toque local e ele veio ali mesmo, num ato contínuo, com o nosso Pedrinho Anísio, vocação de documentarista a quem nada escapara. Filmara tudo desde o hotel, esbaforido num corre-corre sem fim com seu fotógrafo, o também brasiliense João Facó.
A sorte ainda lhe reservava uma surpresa rara e ela veio no outro dia ao acompanhar os passos de Bertolucci quando este foi à Esplanada para ver os palácios de Oscar Niemeyer, que fazia questão de ver de perto, e, depois na volta ao JK, aconteceu a chave de ouro para seu filme. Na palestra que estava programada com o autor de Os sonhadores, na mesa com Ana Maria Magalhães, Carrilho e Gustavo, no instante mesmo em que estava para começar a fala do mestre, Pedro Anísio entrou muito timidamente, pé ante pé, sem avisar, e na falta de uma claquete de verdade estalou uma palma de mão bem próxima ao rosto de Bertolucci.
Ficou todo mundo atônito, mas o cineasta não se deu por achado e emendou de bate pronto: “Action!” E em seguida começou a falar. A plateia não se aguentou e prorrompeu em aplausos. Foi lindo! Essas imagens foram em parte preservadas: o filme de Anísio, Gianni, que as contém ficou depositado na Cinemateca Brasileira em São Paulo, mas, pasmem, o seu autor tinha acabado de retirá-lo para providenciar cópias digitais quando soube do falecimento naquele dia do autor do Último tango em Paris. São os fados!
Outro feito do cinema local me diz respeito, modéstia à parte: levei ao hotel o livro de atas da nossa Fundação Cinememória e com a cumplicidade de Joel Barcelos, que Deus o tenha, consegui colher a assinatura e a impressão do grande mestre. Ele escreveu em sofrível caligrafia no idioma de Dante e Fellini: Posso considerarmi parte del Cinema Novo (sezione italiana)? Con grandísima onore ne. Bernando Bertolucci.”