Vinicius Torres Freire: O extremismo odiento, com ou sem Trump

Polarizações socioeconômicas e ódios diversos não vão passar tão cedo nos EUA.
Foto: SHEALAH CRAIGHEAD/ WhiteHouse
Foto: SHEALAH CRAIGHEAD/ WhiteHouse

Polarizações socioeconômicas e ódios diversos não vão passar tão cedo nos EUA

Donald Trump é uma doença ou sintoma de um mal pior? Derrotado ou vitorioso, já terá deixado sequelas, de qualquer modo. Trump inspirou, incentivou ou legitimou supremacistas brancos, a xenofobia, a desconfiança na razão, em instituições que promovem o debate público esclarecido e que arbitram conflitos de modo democrático, promoveu a mentira sistemática e a disseminação da paranoia. Avacalhou tudo isso que faz parte do pacote básico da democracia liberal.

Há surtos de paranoia ou ressentimento reacionários que causam comoção e sofrimento, mas passam. Ao menos, acabam não tendo força bastante para abalar pilares dessas democracias liberais.

Não foi o caso nem com o macarthismo dos Estados Unidos dos anos 1950, por exemplo. Deixou marcas, destruiu vidas e inoculou para sempre na política americana a rejeição mesmo a ideias sociais-democratas e o delírio anticomunista, mas não produziu instituições autoritárias.

Um movimento contemporâneo, na França, o poujadismo, agregou o ressentimento da pequena burguesia reacionária, corporativista, revoltada com a modernização do país e com instituições da democracia francesa da época, que funcionavam muito mal, aliás, tanto que acabaram em um golpe militar disfarçado, em 1958. Mas a democracia francesa progrediu e o poujadismo é uma nota de rodapé, embora uma de suas crias, Jean-Marie Le Pen, tenha dado brotos depois de quatro décadas dormente.

Trump muita vez é explicado pelo ressentimento dos trabalhadores largados nas regiões decadentes da indústria, pela revolta das comunidades do interior, dos desconfiados da civilização dos costumes e dos direitos de minorias ou discriminados quaisquer, contra as “elites” ilustradas e a indiferença dos tecnocratas econômicos.

A desigualdade de renda e de educação teria sido um fator também, assim como, contraditoriamente, o ressentimento contra programas sociais que justamente atenuam tais iniquidades (de modo diminuto, nos EUA).

Mas mesmo tais ressentimentos não bastam para explicar a força renovada do racismo, das milícias armadas ou o descaramento neonazista. Um grande, embora controverso, sociólogo americano, Richard Sennett escreveu nesta semana no jornal britânico “The Guardian” que o ressentimento seria mais profundo. Reflete uma degradação civilizacional mais séria e que seria a atitude de uns 30% dos americanos.

Trata-se de pessoas para quem a vida socioeconômica é um jogo de soma zero: reconhecer direitos de outros por si só implica a perda dos próprios direitos; rebaixar outrem é um progresso para si. Seria assim parte dos brancos americanos, diz Sennett, um pessimista a respeito da vida pública, do sentimento do propósito da vida ou da situação do trabalho contemporâneo.

Parte da base trumpista de 2016 desertou o presidente agora, acredita Sennett (aposentados, trabalhadores da indústria, pequenos empresários, classe média alta dos subúrbios e parte dos evangélicos). Restaria um núcleo fanático, mas imenso, que tende se tornar ainda mais extremista em caso de Trump: viriam a se sentir mais abandonados e, agora, traídos por outros eleitores e pelo “sistema” em geral.

As feridas americanas não serão curadas tão cedo, conclui Sennett. É difícil captar de modo mais preciso esse ressentimento branco entranhado. Mas decerto tão cedo, no mínimo, não vai se dar um jeito nas polarizações de cor, renda, educação, poder e da falta de entendimento básico do que sejam razão e terreno comum de diálogo.

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