Certo é que presidente mostra capacidade de sobrevivência, favorecido pela inexistência de oposição
Bancar o Renda Cidadã com aumento de imposto é de fato uma conversa entre deputados governistas. Alguns ainda parecem não entender que o governo apenas poderia gastar essa receita extra caso fosse alterado o teto de gastos. A pergunta mais importante, no entanto, é se Jair Bolsonaro arrumaria de fato alguma dessas encrencas.
Pode sair aumento de imposto? Ou pode se armar outro arranjo com o Congresso? Por exemplo, uma extensão do estado de calamidade casado com “reformas” grandes de cortes de despesas, uma gambiarra de alto nível, por assim dizer. Assim, seria possível pagar algum auxílio emergencial a mais, haveria sobra de dinheiro advinda de arrochos (sobre servidores, por exemplo) e algum tempo para arrumar financiamento permanente para um Renda Cidadã. Até mesmo neste governo, algum pouco de organização política poderia parir uma solução dessa espécie.
Na política, Bolsonaro se desdiz sem vergonha, o que tem saído de graça. Na economia, apesar dos arreganhos por si só daninhos, não chegou a tomar ou patrocinar nenhuma decisão final contra o teto ou a favor de aumento de impostos. É omisso, inepto ou avacalha projetos de “reformas” política e socialmente mais sensíveis, mas até agora não ultrapassou de fato o sinal vermelho dos donos do dinheiro grosso, apesar da baderna financeira que seu governo causa.
Na política, é diferente. Bolsonaro escorraçou o lavajatismo, aliou-se à “velha política”, montou bancada mínima para evitar impeachment e interrompeu os comícios golpistas e os ataques ao Supremo, com quem negocia acordão ou acordões. Limitou (mas não cassou) as graças concedidas a “terrivelmente evangélicos”, aos “ideológicos” ainda mais lunáticos e aos adeptos da propaganda do “gabinete do ódio”, até porque tem contas a pagar no Congresso e no Supremo.
Parou também de vociferar naquelas saidinhas do Alvorada. Agora faz comício para inaugurar bica d’água, caminho de vaca e pedra fundamental de ponte.
É verdade que Bolsonaro, Paulo Guedes e o governismo são capazes de dar tiros no pé tais como o vexame ridículo, contraproducente e alienado da pedalada dos precatórios. É verdade também que, dados os vetos de Bolsonaro a cortes de gastos sociais e as ideias de Guedes, restaria nenhuma alternativa a não ser gambiarra, mexida de fato no teto ou uma negociação mais complicada no Congresso (trocar uma extensão da calamidade por grandes “reformas”).
Dados os estranhamentos entre governo e centrão, de um lado, e Rodrigo Maia mais partes de DEM, MDB e PSDB, essa negociação complicada parece remota. Por ora.
Essa novela toda parece ainda mais tediosa a pessoas normais, mas é preciso repetir: desse rolo dependem a fome de milhões e as taxas de juros e o dólar que podem ou não encrencar o crescimento. Do ponto de vista do ocupante da cadeira de presidente, desse rolo depende parte relevante de sua popularidade. O Congresso, de resto, vai ficar parado até acabar o auxílio?
Outras incertezas obscurecem o caminho da solução, claro: o ritmo da economia no final do ano, a possibilidade de vacina, de recuo menos vagaroso da epidemia ou a disputa pelo comando do Congresso em 2021 (conflito que não é besteirinha: foi o começo do fim de Dilma Rousseff, em 2015). Certo é que Bolsonaro tem mostrado capacidade de sobrevivência na selva que ele mesmo cria, se ajeitando politicamente, favorecido ainda pela inexistência de oposição. Não é fácil descartar a hipótese que faça um acordão que o beneficie também nessa história do Renda Cidadã.