Victor Missiato: Narrativas em movimento

Imagem: Montagem | Foto Lula: Adriano Machado/Reuters | Foto Bolsonaro: Isac Nóbrega/PR
Imagem: Montagem | Foto Lula: Adriano Machado/Reuters | Foto Bolsonaro: Isac Nóbrega/PR

Fenômeno favorece polarizações que ganham destaques em processos eleitorais, mas não se traduz em disputas por projetos políticos na esfera do poder

Victor Missiato, doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor do Instituto Presbiteriano Mackenzie e autor do livro Caminhos Invertidos: O Comunismo no Brasil e no Chile*

Junho de 2013 pode ser considerado um “acontecimento-monstro”, tomando como partida a proposta do historiador francês Pierre Nora, que visualizou, nos acontecimentos de maio de 1968, um retorno de uma determinada narrativa política. Ainda nessa perspectiva, outro historiador francês, François Dosse, revela que, como uma “Esfinge, o acontecimento é igualmente Fênix que, na realidade, nunca desaparece. Deixando múltiplos vestígios, volta constantemente com sua presença espectral, para brincar com acontecimentos subsequentes, provocando configurações sempre inéditas”.  

As ressonâncias do que ocorreu há 12 anos no Brasil reverbera em seus espectros políticos, criando narrativas e disputas políticas que insistem em inviabilizar um projeto consensual de desenvolvimento nacional. As duas lideranças que compõem a representatividade dessas narrativas, Lula e Bolsonaro, quase nunca se utilizaram dos movimentos de junho de 2013 para legitimarem suas decisões. No entanto, face a face com esse acontecimento, a sociedade brasileira foi se polarizando cada vez mais, criando uma espécie de labirinto sem fim.

Em dois anos, STF responsabilizou 898 pessoas por atos antidemocráticos

Do estelionato eleitoral do governo Dilma, em 2015, ao impeachment chamado de golpe, em 2016, do discurso da vitória de Bolsonaro, que afirmava lutar contra o comunismo, até a vitória de Lula a fim de salvar a democracia, tudo isso foi abastecido por uma série de inverdades, as chamadas fakes news, que, de todas as partes e todos os lados, causaram e causam grandes confusões e brigas sem fundamento analítico, pois, no intuito de valorizar determinada posição, acaba-se por destruir qualquer tipo de argumento contrário.

O que vimos no último dia 8 de janeiro foi mais uma disputa de narrativas que enfraquece a capacidade de criar novos consensos mínimos em torno de um consenso sobreposto, que, segundo o filósofo John Rawls, torna-se possível “quando as doutrinas que constituem o consenso são aceitas pelos cidadãos politicamente ativos da sociedade e quando as exigências da justiça não conflitam por demais com os interesses essenciais dos cidadãos”. Desse modo, o uso de conceitos como terrorismo pouco explica para a sociedade o ato criminoso de vandalismo que cidadãos cometeram há dois anos.

Ao invés de serem julgadas por atos que outros movimentos sociais e políticos também causaram ao patrimônio público nacional, essas pessoas passaram a compor uma trama narrativa golpista que pouco possui verossimilidade para o imaginário social brasileiro. Portanto, se a justiça tem como um dos pilares a penalização como forma de coação, coerção e consciência social, a nova narrativa de que os ataques, repito, vândalos e criminosos, fazem parte de uma trama golpista não possui capilaridade capaz de estabelecer uma narrativa oficial ou socialmente legítima para a população brasileira.

Tais narrativas em movimento favorecem polarizações que ganham destaques em processos eleitorais, mas não se traduzem em disputas por projetos políticos na esfera do poder. O resultado dessas construções discursivas pouco eficazes se vê na crescente fragilidade do Poder Executivo em assumir seu papel em um regime presidencialista. Nesse jogo de soma zero, quem perde é o Brasil.

*Artigo produzido, exclusivamente, para publicação no site da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania 23.

** As opiniões e análises expressas em artigos publicados no site da FAP são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. Portanto, não expressam, necessariamente, a opinião da instituição sobre o assunto.

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