Vera Magalhães: Qual é a sua laia?

Debate democrático saudável pressupõe que as pessoas saiam dos seus guetos.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Corrêa/PR

Debate democrático saudável pressupõe que as pessoas saiam dos seus guetos

“Vera Magalhães, eu não sou da sua laia.” Esta foi, provavelmente, a única verdade proferida pelo presidente Jair Bolsonaro em sua última live, na quinta-feira, em que dedicou longos minutos a me atacar pessoalmente e a mentir de forma nonsense a respeito da informação que divulguei dois dias antes de que ele compartilhou dois vídeos, durante o carnaval, convocando para as manifestações do dia 15 de março a favor de seu governo e contra o Congresso.

A refutação passo a passo do besteirol de Bolsonaro a respeito dos vídeos eu já fiz no BR Político, neste jornal e nas redes sociais, e outros veículos jornalísticos a divulgaram com destaque, o que mostra a força da imprensa diante das tentativas de enfraquecê-la. Então, esta coluna não é sobre isso.

Mas a palavra “laia”, proferida com o costumeiro ódio pelo capitão, ressoa na minha cabeça desde então. Pela definição do dicionário, laia significa “categoria de seres ou coisas agrupados segundo determinada característica; classe, espécie, gênero, tipo”.

A conotação que Bolsonaro quis dar ao dirigi-la a mim foi pejorativa. Mas ela me atingiu nos brios, me remeteu a origem, a princípios.

Afinal, qual é a minha laia? A minha é a laia dos jornalistas, a que pertenço há 27 anos e contando. É uma laia que apanha de todo lado, mas não verga. É uma laia que busca, sim, o furo, já que a notícia e a informação são a fonte que vai adubar o solo da história e fornecer a matéria-prima para que a sociedade mude, evolua.

E você, leitor, qual a sua laia? Nesses dias de debate ainda mais acalorado que me vi impelida a travar na ágora moderna das redes sociais, houve muita solidariedade e empatia, mas também veio à tona, como um refluxo, a crítica segundo a qual eu, outros jornalistas e a imprensa seríamos “culpados” por termos “normalizado” Bolsonaro e feito “falso paralelismo” entre ele e o PT, e, por isso, “mereceríamos” os ataques que sofremos.

O papel da imprensa é expor os fatos a respeito de qualquer governo, de qualquer partido. Os arroubos autoritários de Bolsonaro nunca foram ignorados nem “normalizados” (urge achar palavra melhor) pela imprensa. Não houve paralelismo entre esse e os demais inúmeros problemas de Bolsonaro e os reais e diversos problemas do PT.

Os vícios do PT no poder foram dilapidar a economia, pilhar os cofres públicos, aparelhar todos os espaços com amigos, traçar um projeto de poder e colocar em ação uma máquina para perpetuar esse projeto por meio da corrupção.

Os desvarios de Bolsonaro não apagam nada disso. E lembrar esses fatos não é passar pano ou fazer falso paralelismo, mas entender parte do fenômeno histórico que nos trouxe até aqui.

A imprensa teve erros? Teve, sempre tem. Ter subestimado a força de Bolsonaro, não ter percebido que ele estava inserido no movimento global de fortalecimento da far-right reacionária e falsamente conservadora e não ter mapeado suas conexões no empresariado, no meio evangélico e no submundo das redes sociais, vitais para sua consolidação.

Mas não houve “normalização”. Isso é viagem de ácido de uma esquerda que está presa num discurso antigo. O lado “anormal” de Bolsonaro foi justamente o mais destacado em debates, entrevistas e perfis, e as pessoas votaram nele POR ISSO, e não APESAR DISSO.

“Ah, então por que vocês se espantam com os absurdos de agora, se era uma escolha muito difícil?”, manda o arrogante ironicão no Twitter. Não é espanto: é cobrar de quem ocupa a Presidência que se institucionalize, sob pena de ser enquadrado pelo sistema de freios e contrapesos da Constituição.

É preciso que este seja o foco do debate público, sob pena de que ele fique, de fato, preso à armadilha em que os guetos querem confiná-lo.

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