Demissão de Alvim não sinaliza que Bolsonaro vá mudar, mas que foi obrigado a recuar
Como tudo no Brasil de hoje, o filme Dois Papas foi tragado pela polarização rasa e redutora que engolfa da política às artes, passando pelo esporte e pelas relações familiares. Direita e esquerda “adotaram” cada uma um Papa, alheias à complexidade de uma Igreja de milhares de anos e aos aspectos sutis da obra.
Numa das cenas mais marcantes do filme, os dois monstros Anthony Hopkins (Bento 16) e Jonathan Pryce (ainda Bergoglio) discutem a diferença entre mudança e concessão. “Eu mudei”, diz o argentino ao Papa, diante de cobranças sobre a revisão que ele fez de dogmas e ritos da Igreja. “Não, você fez concessões”, replica Bento. “Não, eu mudei. É algo diferente.” De fato.
Em mais um episódio de espantosa gravidade, o País foi dormir na quinta-feira e acordou na sexta assombrado por um pesadelo: num vídeo de composição macabra, o então secretário nacional de Cultura, Roberto Alvim, recitava com excitação indisfarçada e olhos vidrados um texto com trechos copiados de Joseph Goebbels, o mais fanático dos ideólogos do nazismo, que foi com Hitler até o final e morreu e matou a mulher e os seis filhos para não fazer nenhuma concessão e não abdicar da ideologia mortífera que ajudou a implementar.
A reação foi avassaladora, mas não unânime. Num sinal de deterioração profunda do tecido social, houve quem defendesse o discurso tresloucado de Alvim pela necessidade de uma cultura que ou será nacional ou “não será nada”, alinhada aos valores cristãos e da família, e lamentasse sua demissão. Outros contemporizaram, celebrando a “rapidez” com que o presidente demitiu Alvim. E é aqui que entra a diferença entre mudança e concessão a que aludi no início do texto.
O presidente de fato se indignou com o que o auxiliar disse? Não, de forma alguma. Menos de 24 horas antes de demiti-lo e poucas antes de ele publicar sua ópera bufa, Bolsonaro o saudou numa das lives semanais – também elas obra da estética autoritária do bolsonarismo, não nos enganemos – como o redentor da cultura nacional. Finalmente, disse o presidente do Brasil, tínhamos um secretário da Cultura digno do posto. E ali Alvim já desfiava sua política cultural sectária, anunciando um prêmio que contemplaria apenas os alinhados com o regime.
Bolsonaro mudou entre os dois atos, o da louvação e o da demissão? Não, fez uma concessão. A contragosto, momentânea. Que não muda o caráter francamente autoritário de seu projeto de poder para a educação, a cultura, a política externa e os costumes, para ficar em poucas áreas.
Na manhã de sexta o presidente ainda relutava em rifar Alvim. Tanto que a primeira nota do Palácio diz que ele já havia se explicado, e o fã de Goebbels se pôs a dar entrevistas em que reiterava o conteúdo da frase copiada. O que levou Bolsonaro a fazer sua concessão foi a evidência de que a comunidade judaica, aliada política importante de seu projeto, não aceitaria uma demonstração tão violenta de antissemitismo vinda de um auxiliar direto do presidente.
Portanto, não haverá mudança. As manifestações racistas, autoritárias e francamente persecutórias a vários setores da sociedade continuarão vindo diariamente do presidente e da ala ideológica do governo.
Mas foi riscada mais uma linha no chão. A sociedade não tolerará mais esses arroubos e nem as tentações de aparelhar e tutelar a vida nacional num projeto que é tudo, menos liberal e democrático. Quantos e quais setores ainda estarão dispostos a fechar os olhos para essa evidência em nome da política econômica é algo que será definidor dos próximos anos.
Mas Bolsonaro foi avisado: pode xingar, ofender, tentar calar a imprensa, que não vai adiantar. Ele não vai mudar. Mas terá de fazer concessões. É democracia que chama.