Aborrecimentos podem até ficar longe dos olhos no feriado, mas têm data para bater à porta
Vera Magalhães / O Globo
Jair Bolsonaro curtiu a vida adoidado no feriado. Esteve em Aparecida, no Vale do Paraíba, já no último dia da intensa programação, mas seu espírito estava mais para Dia das Crianças que para louvar a Padroeira.
Hospedado no Forte dos Andradas, no Guarujá, litoral de São Paulo, andou de motoca pelas outras cidades litorâneas, lamentou não ter podido curtir a partida entre Santos e Grêmio pelo Campeonato Brasileiro — só porque, vejam só que absurdo, não quis se vacinar contra a Covid-19 — e ainda reclamou quando cobrado a respeito das 600 mil mortes pelo novo coronavírus no país que por acaso governa. “Não vim aqui para me aborrecer”, disse Jair num de seus animados rolés do feriadão.
Um vídeo que viralizou também no feriado das crianças, feito por um grupo de ativistas e replicado à exaustão, mostra um Jair com faixa presidencial e num gabinete-brinquedoteca. Arminhas de brinquedo, heróis que atacam o Congresso e, claro, uma motoquinha compõem a cena enquanto ele se irrita com a primeira-dama, Michelle, que insiste em chamá-lo enquanto ele “trabalha”. O vídeo termina com uma mensagem dura: “Lugar de criança não é na Presidência; o Brasil não é brinquedo”.
A pouca disposição do presidente ao trabalho pesado, à coordenação da equipe e a uma agenda estrita de deliberações vai ganhando espaço justamente no terreno em que o bolsonarismo pratica a narrativa política: as redes sociais e os aplicativos de mensagens.
Acontece que, goste o presidente motoqueiro ou não, os aborrecimentos podem até ficar longe dos olhos no feriado, mas têm data para bater à porta.
Bolsonaro não se dignou a dar uma palavra sobre a marca de 600 mil mortos na pandemia. Mas a CPI da Covid concluirá na próxima semana um relatório recheado de imputações de crimes a ele e a boa parte de sua equipe, a atual e a já defenestrada. O memorial às vítimas que ele insiste em ignorar como um estorvo a sua diversão será uma lembrança perene dos descalabros cometidos em nome do negacionismo em sua administração, sob seu comando falastrão.
Por mais que o ministro Paulo Guedes doure a pílula diante da imprensa americana, a inflação corrói não só o poder de compra dos brasileiros, mas a paciência deles com o presidente e sua equipe econômica.
Como soluções políticas e programas não brotam por geração espontânea, as soluções para os precatórios, para o pagamento do Auxílio Brasil, para o preço dos combustíveis e para a crise hídrica demandarão que o presidente arregace as mangas não para acelerar na estrada ou para fazer arminhas com as mãos em selfies com puxa-sacos, mas para tomar decisões de governo, vejam só que aborrecimento.
Da mesma forma, o guichê da política não está menos tumultuado. Enquanto Jair empinava a moto, dois dos poucos grupos que ainda lhe dão alguma sustentação, o Centrão e os evangélicos, batiam boca por causa da malparada discussão a respeito da indicação de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal.
Os sinais dados pelo capitão e por seu time em relação ao escolhido para a vaga de Marco Aurélio Mello são contraditórios, e não são poucos os que veem um ensaio de mudança de planos nos arredores do Planalto. Ver tisnado o apoio que tem na cúpula do neopentecostalismo agora, com Silas Malafaia todos os dias berrando contra ministros no Twitter, é tudo o que um presidente com rejeição recorde não deveria pretender, mas Bolsonaro estava mais preocupado em pegar uma praia que em se chatear tendo de fazer articulação política, algo que desde a posse ele desdenha e que, mais recentemente, passou a confundir com compra de apoio — algo sempre volátil e sujeito, ora vejam, a inflação maior que a do gás de cozinha.