Assim como a reação à vacina em 1904, a apologia a um remédio é irracional e perigosa
Cada epidemia que assola a humanidade tem seus surtos de irracionalidade, ignorância e aproveitamento político associados. Não é diferente com a covid-19, e o fenômeno não é uma exclusividade do Brasil, embora por aqui estejamos nos esforçando para passar à frente no campeonato desses efeitos incidentais.
Em 1904, o Rio de Janeiro viveu a Revolta da Vacina. O presidente Rodrigues Alves nomeou o médico sanitarista Oswaldo Cruz para tentar conter os surtos concomitantes de varíola, febre amarela e peste bubônica, que assolavam uma população crescente que vivia em condições sanitárias precárias. A obrigatoriedade de vacinação para a varíola, aprovada pelo Congresso, foi o estopim para uma revolta popular instrumentalizada por grupos políticos em novembro daquele ano.
Mais de um século depois, diante da pandemia do novo coronavírus, outra reação irracional e perigosa, insuflada por políticos e seus apoiadores, confunde a população e desarticula a estratégia nacional para o combate à propagação do vírus.
Trata-se da pregação do uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Na última semana, o debate, que já era intenso nas hostes bolsonaristas, ganhou emissoras de TV aberta, fez com que o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, fosse forçado a se pronunciar e colocou na berlinda até médicos conceituados, instados por comunicadores a dizer se haviam ou não usado os medicamentos em seus próprios tratamentos.
O uso dos dois fármacos no tratamento da covid-19 é controvertido: resultados positivos na evolução de alguns pacientes são relatados pelo mundo, bem como complicações que não só não resultam na propalada cura como pode fazer com que os pacientes evoluam para óbito.
Seu uso mais efetivo, até aqui, foi observado em laboratório, em dosagens e condições que não podem ser replicadas em pacientes. Seu efeito tem sido mais efetivo quando em associação com outras drogas, como antirretrovirais e corticoides. Esse coquetel só pode ser prescrito por médicos, de acordo com o histórico e as condições de cada doente.
Mas não é isso que se vê nas insanas redes sociais e na movimentação deliberada de Jair Bolsonaro. O que se tem é uma propaganda irresponsável dos poderes da cloroquina e da hidroxicloroquina, sem comprovação científica que a ampare. Chegou-se ao ridículo de parlamentares sempre dispostos a pagar mico para bajular Bolsonaro subirem hashtags como #RemediodoBolsonaro e #JairNobeldaPaz.
A “revolta” da cloroquina e da hidroxicloroquina embute riscos graves. O primeiro e mais evidente é contrapor seu efeito “milagroso” à necessidade de isolamento social, como se o uso liberasse as pessoas a relaxarem a quarentena. O efeito da semana da histeria cloroquínica foi justamente esse: em todo o País os índices de isolamento regridem perigosamente.
Sem testes em quantidades mínimas, o incentivo de Bolsonaro para que as pessoas voltem às ruas tem potencial genocida. Seu novo tour por Brasília, um dos lugares do Brasil que primeiro adotaram regras duras de distanciamento social, é um desserviço presidencial à saúde pública. Displicente, limpou o nariz no antebraço antes de dar a mão a simpatizantes, entre os quais idosos. Uma cena capaz de chocar um mundo quarentenado e envergonhar o Brasil.
Caso prospere a narrativa de que basta pressionar médicos para que receitem medicamentos de eficácia ainda não comprovada e todos podem sair por aí livremente, vamos viver uma tragédia. Neste caso, o presidente não será candidato ao Nobel da Paz (risos), mas sim ao título de chefe de Estado que pior lidou com o mais grave problema enfrentado pela humanidade neste século.