Valor: Risco à democracia marca bolsonarismo

Presidente atacou instituições e aproximou país de uma ‘democradura’, apontam especialistas.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Corrêa/PR

Presidente atacou instituições e aproximou país de uma ‘democradura’, apontam especialistas

Por Cristian Klein e Malu Delgado — Do Rio e de São Paulo

Para ele, cientista político e diretor-geral da Fundação FHC, o primeiro ano do governo Bolsonaro foi marcado pelo constante “teste de estresse”, com ataques às instituições. Para ela, antropóloga e historiadora, o bolsonarismo no poder está levando o Brasil para o grupo de países que podem ser chamados de “democraduras”: têm governos “com forma democrática, mas um conteúdo altamente autoritário”.

O diagnóstico de Sergio Fausto e Lilia Schwarz sobre os 12 primeiros meses de Jair Bolsonaro no Planalto revela uma preocupação com o que pode vir pelos próximos 36 meses de mandato.

Fausto vê instituições que responderam bem às ameaças, como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, à medida que Bolsonaro se mexe, forma um partido com viés religioso e pode fazer indicações ao STF, alerta: “Aguentará por mais tempo?”. Bolsonaro faz de seu governo um campo de batalha ideológico que pode atrapalhar a economia, afirma Fausto. Mesmo que não prejudique, o risco continua: o crescimento pode favorecer o “projeto autoritário” do presidente – a primeira liderança nacional de direita que o país já teve, aponta.

Lilia afirma que já imaginava um governo radical, mas que Bolsonaro desceria do palanque para construir consensos. Não foi o que ocorreu. “Não é esse o interesse do governo. O interesse é trabalhar nos binarismos. Me preocupa muito a intolerância religiosa, a racial, de gênero”.

A índole bolsonarista contra minorias, direitos constitucionais e instituições se dá por um “sistema de mentiras que alimenta certo grupo de brasileiros”. “São ministros sem nenhum receio de lançar falsas verdades”, afirma.

 


 

“Crescimento pode favorecer projeto autoritário”, diz Sérgio Fausto

Cientista político alerta que eventual retomada do crescimento embute o risco de favorecer um projeto autoritário

Por Cristian Klein,  Valor Econômico

Mesmo dando certo, com a recuperação econômica, o governo Bolsonaro pode dar errado, pelo que mostrou no primeiro ano, quando a gestão em áreas como política externa, educação e meio ambiente foi “absolutamente ruinosa”. O alerta é do cientista político e diretor-geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso, Sergio Fausto, 57 anos, para quem a eventual retomada do crescimento embute um risco: o de favorecer um projeto autoritário do bolsonarismo. Fausto afirma que as instituições reagiram bem aos ataques feitos pelo presidente e seus aliados contra, entre outros, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e a imprensa. Mas teme pela capacidade de resistência institucional, sobretudo se a economia fortalecer o presidente. “Esse teste de estresse você aguenta por quatro anos. Aguentará por mais tempo?”, questiona.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Que balanço faz deste primeiro ano de gestão de Bolsonaro?
Sergio Fausto: A descoberta retumbante é que quem manda no governo é o Bolsonaro, ao contrário de algumas fantasias que se fizeram no inicio do mandato, de que, a rigor, haveria um dispositivo militar e outros setores mais pragmáticos que dariam o tom da banda governamental. Não. Quem dá o tom é o presidente e o seu núcleo ideológico. Aparentemente, os militares recuaram para uma posição de trincheira para proteger a corporação dos ímpetos politizantes do bolsonarismo. Sergio Moro também frustra expectativas de quem imaginava que ele pudesse ser uma espécie de contrapeso legalista que se espera de um ministro da Justiça que vem do Poder Judiciário. Não é isso. Ele reconhece o mando político de Bolsonaro e dança conforme a música cujo tom é dado pelo presidente.

Valor: Há exceção?
Fausto: É o ‘posto Ipiranga’. O ministro Paulo Guedes [Economia] conseguiu uma esfera de autonomia maior e isso se estende a alguns outros setores ligados à área econômica, como Infraestrutura e Minas e Energia. São espécies de reservas de racionalidade dentro do governo. Paulo Guedes encontrou no Congresso uma liderança disposta a fazer avançar uma agenda reformista, personificada no [presidente da Câmara] Rodrigo Maia. A dobradinha Rodrigo Maia e Rogério Marinho – o secretário de Previdência, que é o principal negociador, não é o ministro da Economia – produziu resultados. Isso fez com que a recuperação cíclica da economia fosse favorecida neste último trimestre do ano por uma percepção de que existe uma agenda sobretudo na área fiscal que vai ganhando musculatura. Tem o caso da Previdência, já aprovada, e iniciativas de reformas semelhantes também nos Estados. Tem política de governo nessa área.

Valor: E nas outras áreas?
Fausto: Não tem política pública. Em áreas como política externa, educação e meio ambiente, a gestão do governo tem sido absolutamente ruinosa. Há duas perguntas que se colocam: a economia ganhará impulso sustentável ou a gestão ruinosa em outras áreas acabará por interferir no processo de retomada? E mais importante do que isso, do ponto de vista de valores caros a uma sociedade aberta e democrática, é se, com o respaldo da retomada da economia, não acabará por se impor, no médio prazo, um projeto de poder que tem características claramente autoritárias e regressivas.

Valor: Como poderia acontecer?
Fausto: O governo e o seu núcleo ideológico submetem, de maneira sistemática, as instituições a testes de estresse. E elas têm respondido de maneira muito positiva. O Congresso é um destaque extraordinário, seja pelo que fez de construtivo, seja pelo que impediu que fosse feito. Serviu como freio, obstáculo, à implementação de medidas claramente danosas aos direitos humanos e à democracia no Brasil: excludente de ilicitude, sufocamento do financiamento dos jornais e por aí vai. E o STF, sobretudo na figura do decano Celso de Mello, respondeu à altura toda vez que foi provocado acintosamente. Agora, esse teste de estresse você aguenta por quatro anos.

Aguentará por mais tempo? Porque o governo começa a mexer suas peças, nomeia ministros [ao STF], pode vir a se organizar como partido político, pode passar a ter bancada mais orgânica no Congresso. É um processo que inspira temor. As instituições têm resistido, mas aos olhos da população, segundo pesquisas, continuam com prestígio muito baixo.

Valor: Mas Bolsonaro não se mostrou muito desagregador?
Fausto: Sim, Bolsonaro não é um líder com grande capacidade estratégica. Tem muita capacidade de comunicação, é destemido, dobra a aposta, e esta ousadia é percebida como um atributo positivo pela sua base. É capaz portanto de manter a sua base permanentemente mobilizada. Isso é uma novidade na história brasileira. É um presidente de extrema-direita que tem enraizamento popular. Isso permite que ele tenha 30% do eleitorado. A despeito de tudo e de todos, ele manteve essa base solidamente e isso o credencia como candidato forte à reeleição. No caso do Bolsonaro, é tudo mais imprevisível, pelas características e pela trajetória, de onde ele vem.

Valor: Como assim?
Fausto: O Bolsonaro tem uma questão sociológica. Vem de um meio político em que as fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade não estão claramente demarcadas e isso o torna vulnerável a curtos-circuitos, a chuvas e tempestades.

Valor: Está se referindo à relação dele com milicianos?
Fausto: Isso, não estou fazendo nenhuma acusação, mas me baseando em fatos conhecidos. Meu ponto de vista não é criminal, é sociológico, é o meio do qual ele vem. Ele carrega esse meio consigo. Nunca houve um presidente com as origens do Bolsonaro, e há investigações de uma pessoa muito próxima não só em relação ao filho mais velho, mas a toda família Bolsonaro. É um segredo de polichinelo que é um ponto de vulnerabilidade do presidente.

Valor: Refere-se ao ex-capitão da PM Antônio Nóbrega, foragido da Justiça e acusado de liderar um grupo de assassinos de aluguel?
Fausto: Tem vários elos, vários laços. Não estou tirando nenhuma conclusão precipitada. São fatos sequer negados por Bolsonaro.

Valor: Qual é a novidade que Bolsonaro traz?
Fausto: Nunca houve no Brasil uma liderança nacional de direita como ele. Você tem fenômenos locais de políticos de direita, com enraizamento popular. Maluf é um caso em São Paulo. Lacerda foi no Rio de Janeiro. Nunca chegaram a ser lideranças nacionais. O Bolsonaro não só está mais à direita do que estavam Lacerda e mesmo Maluf – e portanto é correto caracterizá-lo como um político de extrema-direita – mas também se diferencia por ser uma liderança nacional. Hoje em dia há apenas duas lideranças nacionais: Lula e Bolsonaro. De onde vem esse enraizamento popular do Bolsonaro? Com a conexão que ele estabeleceu com o mundo evangélico, com a chamada “família militar”, e ao penetrar numa classe média conservadora do interior do país, sobretudo das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, ligada política e sociologicamente ao agronegócio. Esses setores, em geral, emprestavam apoio na eleição presidencial ao PSDB pela contraposição com o PT, embora não o fizessem de coração. O PSDB durante um tempo funcionou como uma espécie de dique, de represa, que recolhia o impulso à direita.

Valor: Qual é o ponto fraco de Bolsonaro?
Fausto: Essa insensibilidade para o tema da desigualdade, mesmo para o tema da pobreza, é um dos principais calcanhares de Aquiles dele. Se o Brasil não atacar, por meio de políticas públicas, da solidariedade social, a desigualdade e a pobreza, ele se transformará num país cada vez mais suscetível à violência, às explosões e à instabilidade. As enormes desigualdades no Brasil não são mais desigualdades, são fossos que dividem a sociedade em vários arquipélagos e estão em estado de guerra latente, uns com os outros.

 

 


 

Risco à democracia marca bolsonarismo: “Estamos em uma batalha de narrativas”, diz Lilia

Para antropóloga e historiadores, intelectuais devem sair a campo e encarar o debate público

Por Malu Delgado / Valor Econômico — De São Paulo

Um governo que produz as próprias verdades sem compromisso com a história e com a ciência. A avaliação da antropóloga e historiadora, Lilia Schwarcz, sobre o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro não é suave. Disposta a deixar o hermetismo da academia e se lançar nas redes sociais, a professora da USP acha que num momento de disputa de narrativas históricas como o atual, os intelectuais devem sair a campo e encarar o debate público. Governos deste tipo, afirma, atuam “no sequestro social”.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Que balanço faz deste primeiro ano de gestão de Bolsonaro?
Lilia Schwarz: Democracia é um regime, por definição, inconcluso. É preciso conquistar a cada dia nossos direitos. Nos últimos 30 anos, os brasileiros conviveram com uma democracia, senão absoluta, pelo menos plena: as instituições funcionaram de maneira autônoma e você não tinha uma imposição do Executivo sobre o Legislativo e Judiciário, e vice-versa. Os brasileiros viveram um momento forte de consolidação de pautas minoritárias e de uma agenda mais ampla, plural e inclusiva. São pautas que hoje, neste governo, estão sob ameaça.

Valor: Ameaças a direitos constitucionais, são a postura mais preocupante deste governo?
Lilia: Nos 28 anos em que nosso presidente foi deputado não primou por defender essas pautas. Hostilizou-as. Eu não tenho problema nenhum com o pensamento conservador. Ao contrário. Acho que a democracia funciona muito melhor quando lida com a diferença. Mas neste caso é regresso democrático. Não é a única pauta em regresso.

Se prestarmos atenção nos ataques à academia e à ciência, veremos que é um governo que claramente produz suas próprias verdades e não tem muito apego a fatos e informações. Há o ataque forte à ciência e ao jornalismo. Mais que uma mentira isolada, conforma um sistema de mentiras que alimenta certo grupo de brasileiros.

Valor: Para onde o Brasil caminha e qual seria o papel da academia? Ela tem sido omissa?
Lilia: No meu livro, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, chamei esses governos, usando fatos citados por outros autores, de “democraduras”. São governos que têm uma forma democrática, mas um conteúdo altamente autoritário. Têm em comum esse tipo de pautas. São presidentes que preferem não fazer o debate público, porque eles se movem nas bolhas das redes sociais. Há momentos em que a intelectualidade brasileira é chamada a opinar publicamente.

Escrevi um livro sobre autoritarismo, que penso que foi uma das primeiras respostas a esse governo, na minha área. Aos que reagiram com espanto à vitória de Jair Bolsonaro, digo no livro que nós sempre fomos autoritários. Ou seja, não é uma resposta atual. Nosso presente está lotado de passado. Na academia nós vivemos um mundo muito protegido da política. Nas redes, foi a primeira vez em que fui chamada de esquerdopata, com maiúsculas e símbolos que eu nem sabia o que eram. Essa exposição é importante, faz você refinar os argumentos e refletir até onde pode ir. Existem certos momentos em que, como se diz nos EUA, “go public”. Ir a público e testar se você pode ajudar no debate. Estou neste momento.

Valor: Sua premissa sobre as “democraduras” suscita que o Brasil está num beco sem saída?
Lilia: Historiador é ruim de previsão. Somos mais a máxima do conselheiro Aires, de Machado de Assis, que dizia que as coisas só são previsíveis quando já aconteceram. Eu imaginava um governo radical, mas também imaginava que nosso presidente pararia de fazer uma política de palanque e construiria consensos. Não é esse o interesse do governo. O interesse é trabalhar nos binarismos. Me preocupa muito a intolerância religiosa, a racial, de gênero. Um presidente que transforma identidade de gênero em ideologia de gênero e altera dados da realidade é um presidente que não tem vocação para governar em nome de todos. Um presidente que recusa dados de “global warming” e demite o diretor do Inpe [Ricardo Galvão], reconhecido com um dos dez maiores cientistas do mundo, que chama de pirralha uma garota que virou o símbolo de uma luta necessária da ecologia é um presidente que não tem vocação para representar um país tão grande como o Brasil. Se existe uma saída, é de longo prazo e é a aposta na educação. Temos um ministro que aposta no escândalo e não se comporta. Que tipo de mensagem esse ministro passa?

Valor: Como o presidente se apropria do discurso Deus, Pátria, Família?
Lilia: Bolsonaro se elegeu em parte com esse discurso. As igrejas evangélicas são muito plurais. Esse é um país laico. Quando o presidente se define a partir de uma religião só, ele rasga a Constituição. Ele tem se valido desse grupo. Bolsonaro não é só um autoritário. Ele é um populista. Muitos desses representantes máximos das “democraduras” têm esse discurso populista. A característica do populismo é retratar a realidade de forma muito simplista, com frases curtas, de grande efeito, e prometer o que você sabe que não pode cumprir. Não raro esses líderes populistas se associam a imagem de pequenos deuses na terra. A imagem de Bolsonaro como mito e de Eduardo Bolsonaro como mitinho é preocupante. O que é o mito? Mito é com quem você não discute, com quem você não dialoga. O mito está numa esfera muito diferenciada dos demais cidadãos. O mito não tem que responder. Não tem que fazer pactos republicanos. O mito é tudo, menos um presidente republicano. Bolsonaro usa e abusa de seus símbolos. O problema não é se apropriar da bandeira, mas é garantir as cores da bandeira só a uma parte dos brasileiros. Esses tipos de governo atua no sequestro social. O tema do nós, os justos, eles ruins. É o uso da simbologia pátria, como se a Pátria fosse propriedade privada do presidente. Ele governa como se estivesse em casa própria, a partir de argumentações de fundo familiar e íntimas.

Valor: Se o autoritarismo nos acompanhou há tantos séculos, onde foi que essa tampa da panela de pressão se abriu? E por quê?
Lilia: Temos que pensar internacionalmente. A eleição de [Donald] Trump teve efeito mundial. Foi uma onda reacionária que nos invadiu. Minha geração errou ao achar que a democracia era o final da linha. Há manuais de governo. Basta ver o encontro conservador que tivemos aqui em São Paulo. O governo Bolsonaro permitiu que as pessoas saíssem de suas cavernas.

Valor: Uma das características desse governo é a sucessão de recuos. O presidente adota um comportamento inidôneo?
Lilia: Ele tem um comportamento político que não se preocupa com a idoneidade. Até então nós julgávamos um político a partir da sua idoneidade e da sua ética. Nós nunca tínhamos visto como qualidade o fato de um político dizer, desdizer e não se arrepender disso. E são ministros sem nenhum receio de lançar falsas verdades. É impressionante a capacidade que eles têm de dizer e se desdizer.

Valor: Nossas instituições são sólidas o suficiente para conter essa onda autoritária?
Lilia: Eu penso que não, tanto que nosso chefe do Executivo tenta, a todo momento, passar por cima delas. Bolsonaro destituiu o fiscal que o multou por pescar em área proibida. Bolsonaro entrou no governo para ser um vingador. Estamos num momento de batalhas de narrativas históricas. Há duas narrativas muito castigadas: a escravidão e a ditadura militar. O Brasil é um país que não pensa em reparações. É como se fosse o fantasma que volta para puxar seu pé. A Constituição de 1988 abriu mão de legislar sobre a questão militar. Fomos o último país do ocidente a abolir a escravidão mercantil e nunca se pensou em ressarcimento. E esse governo, de forte influência militar, tem essa campanha aloprada de negar as consequências do golpe.

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