Para ex-ministro do STF Eros Grau, que organiza livro sobre o militante Armênio Guedes, há risco de retorno aos tempos da ditadura
Por Roldão Arruda – Eu & Fim de Semana
Desde que deixou o Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, o jurista Eros Grau divide o tempo entre seus escritórios em São Paulo e Paris e sua residência em Tiradentes, interior de Minas. Aos 79 anos, dedica-se sobretudo a produzir pareceres jurídicos. Também escreve para jornais – mantém uma coluna quinzenal no “Diário de Santa Maria”, a cidade gaúcha onde nasceu – e produz obras de ficção. É um duplo, como gosta de se definir: “Um cara que faz literatura e também faz direito”. Entre um escrito e outro, ele acaba de organizar o livro de artigos “Nosso Armênio” (Globo), sobre o jornalista e militante político Armênio Guedes (1918-2015).
O volume reúne 33 artigos escritos por amigos e admiradores de Armênio. Entre eles estão os jornalistas Elio Gaspari, Juca Kfouri e Ricardo Lessa, o cientista político Marco Aurélio Nogueira, os políticos Aloysio Nunes, Almino Afonso e Milton Temer e o cineasta Zelito Viana. Trata-se sobretudo de uma homenagem a Armênio, que militou no Partido Comunista Brasileira, o “Partidão”, durante 48 anos e que mesmo antes de se desligar da legenda, em 1983, já se destacava de seus pares no debate político e empolgava militantes mais jovens por sua defesa intransigente da liberdade e da democracia.
Armênio tinha quase a mesma idade do pai de Eros Grau, mas era visto pelo jurista como uma espécie de irmão mais velho. Na entrevista a seguir, concedida em seu escritório em São Paulo, onde mantém à direita de sua mesa uma foto do pai e da mãe e, à esquerda, uma foto de um jovem e elegante Karl Marx (1818-1883), o ex-ministro fala dessa amizade e também da conjuntura política.
Valor: Como o senhor conheceu Armênio Guedes? Foi no tempo em que o senhor também militava no “Partidão”, nos anos 60 e 70?
Eros Grau: Não. Na época em que eu tinha ligação com o partido, ouvi falar do Armênio, sabia quem era, mas nunca tive contato com ele. Nosso primeiro encontro aconteceu em 1980, após a Lei da Anistia, quando ele retornou do exílio em Paris e o Roberto Miller, então diretor da “Gazeta Mercantil”, chamou-o para trabalhar com ele. Na época eu era colaborador daquele jornal, e foi lá que nos aproximamos, o que foi uma grande vantagem para mim.
Valor: Por quê?
Grau: O Armênio me orientava, dava dicas de como escrever, que assuntos abordar, que formas de abordar. Posso dizer que fui iluminado por ele. Na biblioteca da minha casa em Tiradentes, tenho na parede uma bela foto dele, que tirei num de nossos vários encontros naquela casa. Eu a mantenho lá porque me faz pensar que, embora não esteja mais por aqui, ele ainda me ilumina. Isso faz bem para a alma.
Valor: Foi por causa de sua ligação com o “Partidão” que o senhor foi preso em 1972?
Grau: Sim. Na época eu trabalhava no gabinete do Dilson Funaro [1933-1989], que era secretário do Planejamento do Estado de São Paulo. Certo dia, precisando de alguma coisa minha, ele perguntou: “Cadê o Eros? Por que ele não está aparecendo por aqui? Mande chamá-lo”. Nessa hora, um de seus assessores mais próximos criou coragem e contou que eu havia sido preso uma semana antes e estava detido no Doi-Codi de São Paulo. Depois de ouvir aquilo, o Dilson foi até o gabinete do governador, que era o Roberto Abreu Sodré [1917-1999], e disse: “Olha aqui, eu tenho um assessor, meu amigo, que foi preso. Se ele não for solto hoje, até a meia-noite, amanhã cedo eu me demito e chamo a imprensa para dizer que não posso seguir em frente com uma situação dessas”. Não sei o que o governador fez, mas sei que fui liberado naquele dia. Se eu não tivesse saído, poderia ter morrido ou ido para o exílio.
Valor: Sua prisão foi relembrada quando, em 2008, o Conselho Federal da OAB ingressou com uma ação no Supremo solicitando a revisão da aplicação da Lei da Anistia, com a anulação do perdão dado aos agentes do Estado que torturaram presos políticos. Sua indicação como relator do caso levou muita gente a pensar que, como havia sido torturado, seria favorável à revisão. Mas o senhor negou o pedido, e a ação foi rejeitada. O que o levou a essa atitude?
Grau: Desde quando cheguei ao STF em 2004, conduzido pelas mãos do Márcio Thomaz Bastos [1935-2014], todo mundo imaginou que um comunista estava chegando àquela corte e que eu seria capaz de descumprir a Constituição. Mas depois todo mundo se surpreendeu porque fui, graças a Deus, um fiel cumpridor da Constituição. Fiz o que um juiz deve fazer: aplicar a Constituição e as leis, mesmo quando não gosta. O que diz a Lei da Anistia? Diz que foi ampla, geral e irrestrita, o que significa que atingiu os dois lados. Perdi amigos e ganhei uma coleção de inimigos por causa daquele voto, mas não me importo com isso. O que importa e me dá orgulho até hoje é ter sido fiel à Constituição e às leis. Eu cumpri a lei.
Valor: Armênio Guedes, que sofreu na ditadura e teve um irmão morto sob tortura, foi ouvido pelo senhor? Ele o ajudou a tomar a decisão?
Grau: Muito. O pensamento dele está retratado no meu voto. Ele era um homem muito culto, sereno e prudente, e nós dois sempre nos colocamos um diante do outro como irmãos. Acho isso engraçado porque, embora fosse apenas um ano mais novo que meu pai, nós dois conversávamos sempre como se tivéssemos a mesma idade. Ele era meu irmão.
Valor: O que o senhor acha que Armênio diria da atual conjuntura política do país?
Grau: Eu acho que diria: raciocine com prudência, cada coisa a seu tempo. O tempo que estamos vivendo exige certa serenidade. Tenho conversado muito sobre isso com meus amigos nos encontros em minha casa em Tiradentes.
Valor: Como viu o debate sobre prisão em segunda instância? Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal decidiu que réus condenados só poderão ser presos após o trânsito em julgado, isto é, depois de esgotados todos os recursos.
Grau: A questão está definida na Constituição, no artigo 5º, inciso 57, que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória”. O STF decidiu com prudência, nos limites do quanto estabelece o artigo 2º da nossa Constituição, nos termos do qual o Legislativo faz as leis e a Constituição, o Executivo governa dentro da lei e da Constituição e o Judiciário examina se tudo está de acordo com a Constituição e as leis. Um poder não pode usurpar atividades do outro. Pode ser até que, pessoalmente, eu acredite que a prisão deveria ocorrer após a decisão de primeira instância, mas como juiz tenho que cumprir a lei e a Constituição. Sempre me orientei por isso em tudo que decidi. Fico imensamente feliz pelo fato de o STF ter confirmado o quanto afirmei em 2009, como relator do habeas corpus 84.078-7.
(Neste ponto da entrevista, Eros Grau pede ao repórter para pegar um livro na estante e ler o título. Trata-se de “Por Que Tenho Medo dos Juízes”, obra em que fala de magistrados que, alegando questões de princípios, acabam julgando de acordo com leis próprias. Conta que o assunto o interessa há muito tempo e que o livro já foi traduzido para o francês e o alemão e que brevemente será publicado em inglês.)
Valor: O senhor deu esse título para o livro em 2009. Acha que ele continua atual?
Grau: Mais do que atual.
Valor: Uma das características de Armênio Guedes mais destacadas nos artigos do livro é o apreço pela democracia. Neste momento da vida política, no qual se fala até em retomada do AI-5, o senhor acha que a democracia corre algum risco?
Grau: Sim. Observo uma tensão muito grande, com o risco de retorno aos tempos da ditadura.
Valor: Um livro sobre o Armênio pode ser útil nesta conjuntura?
Grau: Ele foi sempre um exemplo de prudência e serenidade. Foi um homem que, embora nunca tenha deixado de lado essas duas virtudes, jamais aceitou as injustiças. É um exemplo.
Valor: Quais seriam suas sugestões para se atravessar este período de tensões ao qual se referiu?
Grau: Há um grande poeta gaúcho, já um pouco esquecido, chamado Alvaro Moreyra [1888-1964], que tem um poema de dois versos que é uma maravilha. Ele diz: “A vida está toda errada/ vamos passá-la a limpo?”. É isso. Tem que passar a limpo tudo isso, o Poder Executivo tem que ser um fiel cumpridor das leis e da Constituição, o Judiciário tem que ser o controlador dos atos que se praticam e o Legislativo pode eventualmente pensar em reformular as leis.