SÃO PAULO – A operação Lava-Jato escancarou a deformação patrimonialista do Estado brasileiro, diz o economista e escritor Eduardo Giannetti, para quem o país tem a oportunidade de corrigir essa distorção. Segundo ele, o problema resulta da combinação de “um patronato político que usa as suas prerrogativas para se perpetuar no poder” e de “empresários de peso, do setor privado, que buscam desesperadamente atalhos de enriquecimento junto a governantes dispostos a negociar”.
Para Giannetti, o país assiste, “ao vivo”, uma aula de sociologia política sobre a deformação patrimonialista do Estado. Ela mostra que “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido” – na frase de Sérgio Buarque de Hollanda, em “Raízes do Brasil” – e que a economia de mercado no Brasil é uma caricatura, segundo ele.
Na visão de Giannetti, o problema “chegou a um tal paroxismo que abre uma oportunidade de correção profunda”. Mudar esse estado de coisas depende de uma reforma política e de uma reforma econômica que as eleições de 2018 “podem viabilizar, mas não garantem”, avalia ele, que diz gostar da ideia de uma Constituinte exclusiva, focada na reforma política e em alterar o pacto federativo.
Giannetti antevê dois cenários possíveis ao falar das eleições de 2018, um de polarização e outro de pulverização. O de polarização depende fundamentalmente de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ser candidato, afirma o economista. “Se isso ocorrer, vai surgir quase que inevitavelmente um outro polo que será o anti-Lula. Pode ser [João] Doria [prefeito de São Paulo], pode ser [Jair] Bolsonaro [deputado do PSC-RJ]”.
Já no de pulverização, sem Lula, haveria “uma dispersão grande de candidatos”, com mais políticos se animando a participar do pleito”, porque o quadro tende a ficar mais aberto. “Acho que é melhor para o Brasil o cenário de pulverização, embora haja o problema de que ele também abre a porta para outsiders aventureiros.” Caso se concretize o de polarização, Giannetti acredita que a eleição tende a ser “muito rancorosa, muito violenta, e muito sem diálogo”.
Giannetti também fala sobre a sua relação com Marina Silva (Rede), a quem destaca pelo compromisso ético, pela visão de mundo e por ser um “exemplo de vida e de superação”. Diz que não se afastou da ex-senadora, de quem foi conselheiro nas eleições de 2010 e 2014, mas considera que ela precisa decidir se é uma líder de movimento, como o americano Martin Luther King e o indiano Gandhi, ou uma candidata a chefe de Executivo.
Ele vê com bons olhos a possibilidade de Marina e o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa estarem juntos na eleição de 2018. Afirma ainda que, “numa condição de aconselhamento e estrategista”, está “perfeitamente à disposição”. A seguir, os principais trechos da entrevista com o autor de livros como “Trópicos Utópicos” e “O Valor do Amanhã”.
Valor: Michel Temer tem lutado para seguir no cargo. Quais as consequências de sua permanência até o fim de 2018?
Eduardo Giannetti: Uma condição de governabilidade que vinha se restaurando foi altamente comprometida a partir de 17 de maio, quando veio a público a delação de Joesley Batista, da JBS. É um governo que vai usar a sua energia daqui para frente simplesmente para sobreviver, ainda mais com o procurador-geral da República fatiando a denúncia. Isso obrigará o governo a ficar muito tempo numa postura de garantir o próximo dia. Para mim, Temer perdeu a autoridade e a legitimidade para governar. O que ocorreu em termos de apuração é conclusivo. Ele está envolvido em práticas inadmissíveis juridicamente no exercício do cargo.
Valor: Qual o impacto da nova crise política sobre a economia?
Giannetti: O timing para a economia não poderia ter sido pior. No momento em que se desenhava finalmente um cenário consistente de recuperação, o processo foi interrompido, os horizontes se encurtaram dramaticamente e se perdeu a condição de governabilidade, que é fundamental para avançar nas reformas e na recuperação de um mínimo de tranquilidade para a economia voltar a ter confiança. Os indicadores de confiança já estão todos regredindo. As decisões de investimento que começavam a ser tomadas foram novamente suspensas e não há um horizonte decisório para ações que envolvam comprometimento de recursos por um prazo maior.
Valor: Há mais aspectos preocupantes?
Giannetti: Uma coisa grave para o Brasil institucionalmente é o modo como essa delação premiada veio a público. Foi muito atabalhoado. Isso vem se repetindo na história da Lava-Jato, e é um enorme desserviço para a justiça, porque cria muito ruído desnecessário. Uma delação dessa gravidade, quando vem a público, deve ocorrer de um modo organizado, institucional, e não na forma de vazamentos seletivos, com um timing que ninguém sabe o que definiu e por que canal ocorreu.
Valor: A perspectiva de um Temer fraco até 2018 significa que teremos uma reprise do fim do governo Sarney?
Giannetti: Há semelhanças com o fim do governo Sarney e com o período que precedeu o impeachment da Dilma, mas com uma diferença importante – e para melhor. Hoje nós temos uma equipe econômica excelente não apenas na Fazenda, mas também nas principais estatais e no Banco Central. Isso nos protege, eu acredito, de uma aventura populista. No curto prazo, o incentivo para um governo desesperado para sobreviver é usar o que tem para comprar apoio. É necessário monitorar se a equipe econômica se mantém ou se vai sofrer baixas relevantes, que seriam indicativas de que estamos degringolando para uma situação como a do governo Sarney.
Valor: Há chances de Temer aprovar a reforma da Previdência?
Giannetti: A cada dia que passa me parece menor a probabilidade. Se for aprovada, vai ser muito desidratada, e a possibilidade de isso ser realmente votado antes do começo da temporada eleitoral é cada vez mais restrita. O fatiamento da denúncia da Procuradoria-Geral da República estreita ainda mais a janela de oportunidade de uma votação. E, depois da farsa que foi o julgamento do TSE, em que Temer foi absolvido por excesso de provas, estou preparado para uma farsa talvez ainda pior na Câmara dos Deputados. O mais provável é Temer concluir o mandato.
Valor: Como o sr. vê a situação fiscal? Em que medida a trajetória da dívida pública preocupa?
Giannetti: A dívida bruta não é grande se você a olhar estaticamente. Ele está acima de 70% do PIB, não é alguma coisa que dispare todos os alarmes. Ela é muito alta para os padrões emergentes, mas, se você olhar no mundo, não é como a do Japão, como a da Itália. O problema é a taxa de crescimento, que é explosiva. Isso preocupa. E há um problema de Previdência gravíssimo que, se não for tratado a tempo, vai levar o país para a insolvência. O que ocorre no Rio pode ser apenas uma primeira manifestação, se nada for feito, de uma realidade para a nação.
Valor: Os Estados estão em situação delicada. O que levou a isso?
Giannetti: Há um esgotamento do ciclo de expansão fiscal que começou em 1988. Juros e Previdência são parte do problema, mas não acho que isso dê conta da piora da situação fiscal de lá para cá. Em números arredondados, o país tem uma carga tributária de 35% do PIB e um déficit nominal de 8% a 9% do PIB. Com isso, 43% a 44% do PIB são intermediados pelo setor público. Juros e Previdência, juntos, dão algo como 20% do PIB. Nós teríamos 23% a 24% do PIB livres de juros e Previdência para atividades fim no setor público. É a carga tributária bruta para um país de renda média, mas sociedade não vê a contrapartida. O investimento público caiu desde 1988 como proporção do PIB. Os nossos indicadores sociais são muito defasados, muito ruins. Há alguma coisa mais além de juros e Previdência. A minha conjectura é que é um problema de federalismo truncado.
Valor: O que é exatamente isso?
Giannetti: Nós tínhamos um modelo muito concentrado no governo central no regime militar. Em 1988, fez-se a opção pelo Estado federativo. Mas, em vez de transitarmos de um para o outro, acoplamos um ao outro. A sociedade, que carregava um Estado nas costas, passou a carregar dois Estados superpostos. Se tudo tivesse corrido bem de 1988 em diante, nós teríamos visto que, a um aumento do gasto líquido de Estados e municípios, teria correspondido uma queda do gasto líquido do governo central. Mas os três níveis de governo passaram a crescer. Brasília ficou grande demais. Defendo uma redução do tamanho do governo central e um encaminhamento de um genuíno Estado federativo, com maior poder principalmente para o governo local. Isso implica um redesenho da autoridade para tributar. O dinheiro vai a Brasília para voltar. É péssimo.
Valor: Há um grande descrédito em relação à política. Isso abre espaço para um candidato fora do sistema em 2018?
Giannetti: Antes de falar em candidatos, acho importante dizer que o Brasil nunca teve uma oportunidade como essa, que agora se oferece, de corrigir a deformação patrimonialista do Estado. O que é isso? É um patronato político, um estamento político, que usa as suas prerrogativas para se perpetuar no poder, e são empresários de peso, do setor privado, que buscam desesperadamente atalhos de enriquecimento junto a governantes dispostos a negociar. Isso não foi inventado da redemocratização para cá. É uma característica que acompanha a formação do Brasil como nação, mas se escancarou agora de um modo como nunca antes. Nós estamos tendo uma aula de sociologia política, ao vivo, sobre a deformação patrimonialista do Estado brasileiro. Tudo aquilo que Raymundo Faoro [autor de “Os Donos do Poder”] fala, tudo aquilo que Sérgio Buarque de Hollanda fala -“a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”. Está aí. A caricatura que é o funcionamento da economia de mercado no Brasil. Os grupos que dominam empresarialmente não são aqueles que obtêm o crescimento por meio da inovação, da oferta de bens e serviços cujo valor o mercado reconhece, a sociedade reconhece. Nós temos uma chance de quebrar o lamentável mal-entendido da democracia e de criar finalmente uma verdadeira economia de mercado, em que haja uma separação clara e definida entre o setor público e o privado.
Valor: Esses seria o grande legado da Lava-Jato?
Giannetti: A Lava-Jato não é condição suficiente, mas é condição necessária para isso, porque escancarou a deformação patrimonialista como nada na história do país tinha permitido. É por causa disso que eu tenho citado um verso de Fernando Pessoa – “Extraviamo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho”. A deformação patrimonialista chegou a um tal paroxismo que abre uma oportunidade de correção profunda.
Valor: Isso pode ocorrer na eleição de 2018?
Giannetti: Isso depende de uma reforma política e de uma reforma econômica também, que as eleições de 2018 podem viabilizar, mas não garantem.
Valor: O sr. não vê o risco de esse cenário político conturbado levar a eleição de uma aventureiro?
Giannetti: Acho que dois padrões podem ocorrer na eleição de 2018. Um é o de polarização e o outro, de pulverização. O primeiro depende fundamentalmente de Lula ser candidato. Se isso ocorrer, ele tem automaticamente um piso de 20%, 20% e poucos por cento do eleitorado, que o coloca no segundo turno. Nesse quadro, vai surgir quase que inevitavelmente um outro polo que será o anti-Lula. Pode ser Doria, pode ser Bolsonaro. E essa polarização dominará o quadro sucessório.
Valor: E no de pulverização?
Giannetti: Nesse cenário, Lula não será candidato. Nós vamos ter uma dispersão grande de candidatos e acho que muitos se animarão a participar do pleito, porque vai ficar mais aberto. Acho melhor para o Brasil o cenário de pulverização, embora haja o problema de que ele também abre a porta para outsiders aventureiros. Pode surgir alguém do nada, ou um candidato com ideias muito demagógicas e muito irresponsáveis, mas que obtenha do eleitorado algum tipo de adesão. No entanto, seria muito ruim para o Brasil um cenário de polarização radical, porque seria uma eleição muito rancorosa, muito violenta e muito sem diálogo. Para a democracia brasileira, é melhor Lula não ser candidato.
Valor: Há elementos suficientes para que Lula não seja candidato?
Giannetti: É uma decisão que cabe à Justiça brasileira. Mas, pensando numa eleição que nos permita um bom debate e um bom amadurecimento do que precisa ser feito, eu acredito que o cenário de pulverização é mais arejado. Tem mais oxigênio para o diálogo, para o debate e para uma campanha construtiva. Uma campanha altamente polarizada, depois de todo esse processo, vai ser corrosiva.
Valor: O sr. foi conselheiro de Marina Silva em 2010 e em 2014. Ela pode ser uma candidata fora do sistema e que ao mesmo tempo agrade empresários e o sistema financeiro, com uma mensagem reformista?
Giannetti: Marina é uma líder com características raras em qualquer lugar do mundo. De compromisso ético, de visão ampla de mundo, de exemplo de vida e superação. Mas precisa decidir se é uma líder de movimento ou é uma candidata a chefe do Executivo.
Valor: Qual é a diferença?
Giannetti: Líder de movimento é alguém que abraça uma causa e tem fundamentalmente um papel de mobilização e trabalha muito num plano simbólico. Estou falando aqui de Martin Luther King, de Gandhi. É um caminho de mobilização de consciências. Outra coisa é ser candidato a chefe do Executivo, que precisa ter definição em relação a temas muitas vezes espinhosos e que vão desagradar a muitos, porque inevitavelmente haverá ganhadores e perdedores. Tem que ter uma equipe sólida, técnica, que dê suporte ao projeto. E Marina, na minha avaliação, reluta muito entre essas duas situações. Uma figura do século XX inspiradora é Nelson Mandela, que transitou de uma liderança de movimento para uma chefia de Estado. Uma das coisas muito interessantes que Mandela fez é o seguinte. Ao se eleger presidente da África do Sul, manteve no BC a mesma equipe da época do apartheid, porque não se brinca com moeda.
Valor: O sr. está afastado da Marina?
Giannetti: Não. Eu não sou filiado ao partido [Rede]. Sempre que eu sou demandado, eu ofereço o melhor que eu tenho. E vejo como uma promessa de renovação desse campo a possibilidade de Joaquim Barbosa e Marina estarem juntos na campanha em 2018. Os dois têm duas características comuns muito poderosas para a imaginação brasileira e para a renovação da nossa política. São dois brasileiros com compromisso ético inabalável, que não estão contaminados pela velha política e que, vindos de situações de maior adversidade, conquistaram e abriram trajetórias por meio da educação.
Valor: Mas eles teriam a habilidade política necessária para governar um país que atravessa uma crise como a atual?
Giannetti: Tem que construir, tem que ter um bom time técnico, sólido, tem que ter articuladores políticos competentes, que são fundamentais num projeto desse tipo. Mas eles têm muito a oferecer como exemplo para a sociedade brasileira daquilo que nós mais precisamos ter, que é a centralidade da educação e do conhecimento na construção do nosso futuro.
Valor: O sr. colaboraria de novo com Marina em 2018?
Giannetti: Eu tenho os meus limites e as minhas possibilidades. Eu jamais assumiria um cargo executivo, porque não tenho perfil para isso. Eu não sou uma pessoa que sabe trabalhar em equipe, que gosta de dar ordens, que cobra resultados.
Valor: Mas participou das duas campanhas de Marina.
Giannetti: Numa condição de aconselhamento e estrategista, colaborando num debate, eu estou perfeitamente à disposição, se for o caso. Não sei se é o mesmo papel das eleições anteriores, mas, para discutir o futuro do Brasil numa visão generosa e mais focada em redução de desigualdade e construção de uma prosperidade sustentável, eu estou disposto a contribuir com o que eu puder.
Valor: Como sr. vê João Doria como candidato a presidente?
Giannetti: Acho que é muito cedo para avaliar a sua aptidão, inclusive como gestor. Acho prematuro. Seria precipitado um voo dessa altura neste momento.
Valor: Bolsonaro tem avançado nas pesquisas. Ele pode ser eleito?
Giannetti: Acho muito remota a viabilidade eleitoral de Bolsonaro, mas ao mesmo tempo eu fico extremamente preocupado com as intenções de voto que tem obtido. É o desencanto radical com a política. Ele galvaniza toda a raiva de alguns segmentos que estão absolutamente desgostosos com os caminhos que as coisas tomaram no Brasil. Mas certamente não é por aí que nós vamos melhorar. Um dos cenários mais perturbadores, que me deixaria profundamente melancólico e deprimido, seria Lula e Bolsonaro no segundo turno.
Valor: É possível ser otimista em relação a 2018?
Giannetti: O meu otimismo é em relação ao autoconhecimento pelo qual o Brasil passa. Tínhamos um câncer que nos corroía as entranhas e que a Lava-Jato explicitou e escancarou. A deformação patrimonialista do Estado, o mal-entendido que é a nossa democracia e a caricatura que é a nossa economia de mercado. É fundamental hoje para o Brasil o fato de que esse câncer aflorou, para nosso terrível desgosto e perplexidade, mas ele se tornou aberto. A grande pergunta é o que nós vamos fazer diante dessa realidade.
Valor: Isso cabe ao próximo presidente?
Giannetti: Cabe à sociedade. A campanha vai inevitavelmente discutir como lidar com essa realidade que nos ofende profundamente e na qual nós não nos reconhecemos. Há um problema muito sério de relação promíscua entre o público e o privado. Vemos a ruína de um sistema de poder. Nós teremos que refundar a democracia no Brasil. Eu vejo com bons olhos a possibilidade de uma Constituinte restrita e exclusiva.
Valor: Nos moldes do que o jurista Modesto Carvalhosa propõe?
Giannetti: E que outros já propuseram, como Marina em 2010. A regra de ouro é a cláusula de exclusão. Quem participar não se elege para cargo público por dez anos. O fundamental é separar o processo constitucional do jogo político-partidário, o que não foi feito em 1988.
Valor: A Constituinte deveria tratar apenas da reforma política?
Giannetti: Trataria da reforma política e do pacto federativo, abordando a reforma tributária, a autoridade para tributar no Brasil. O sistema tributário é quase inexplícavel na sua labiríntica complexidade e irracionalidade.
Por Sergio Lamucci , do Valor Econômico