Vagner de Souza Gomes: A “grande política” na corda bamba

Em análise de conjuntura, sempre é bom lembrar que tudo começou com Maquiavel
Foto: Reprodução
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Vagner de Souza Gomes / Horizontes Democráticos

O recurso ao uso constante do termo “fascismo” nas análises políticas no Brasil, desde 2013, sugere que o público brasileiro seria um especialista na história política italiana. Portanto, M – O filho do Século de Antonio Scurati (2020), mereceria mais atenção no aguardo da publicação de sua sequência. Todavia, vivemos numa globalização que “pasteurizou” a formação das lideranças em gestores administrativos ao contrário de formuladores de saídas pela via do desejo da convivência nos valores humanos.

Consequentemente, é muito bem-vinda a publicação de A Itália em Disputa: comunistas e democratas-cristãos no longo pós-guerra (1943-1978), do intelectual italiano Giuseppe Vacca, para contribuir nesse processo de educação política da sociedade brasileira que terá seu clímax nas próximas eleições gerais em outubro. Se a “grande massa” da militância faz uso desse conceito como se fosse uma cloroquina verbal de “lacração” nas redes sociais, se espera dos quadros políticos maior aproximação com a realidade a partir do entendimento de como a “grande política” poderia ser conduzida num processo de defesa da República e da democracia.

No livro de Vacca, somos convidados ao cenário da história da política italiana diante do desafio de começar a reconstrução de um país que viveu a luta armada de libertação. Foto: Divulgação

Em análise de conjuntura, para os poucos que ainda se aventuram nessa trilha que se distingue daqueles que analisam números de pesquisas de opinião, sempre é bom lembrar que tudo começou com Maquiavel. No livro de Vacca, somos convidados ao cenário da história da política italiana diante do desafio de começar a reconstrução de um país que viveu a luta armada de libertação no qual comunistas e cristãos se aproximaram naquilo que seria um legado para décadas futuras até que a chamada “república dos partidos” fosse atingida por uma grande crise.

Sabemos muito bem que os homens fazem a história, mas nem sempre a conduzem como desejam. Os capítulos do livro são de uma leveza na exposição das intervenções dos atores políticos e nos presenteiam com análises sobre como é necessária a “renúncia” de determinadas convicções para a condução da “grande política”, com a ética de responsabilidade. Vacca se fundamenta numa pesquisa histórica atualizada em fontes primárias e nas interpretações do mundo acadêmico. Das lições sobre o fascismo acabamos nos ambientando com as lições da “grande política” na corda bamba, visando a reconstrução do país.

Palmiro Togliatti tinha de si um Alcide De Gasperi como ponto de equilíbrio. Foto: Reprodução

Superar o autoritarismo fascista não é uma palavra vazia diante da sua dramaticidade política. Uma tarefa que a história italiana do pós-guerra demonstra não ser uma simples sequência de acontecimentos. Havia análise e formulação. Palmiro Togliatti tinha de si um Alcide De Gasperi como ponto de equilíbrio. Fazer política requeria fazer discursos com bases programáticas para passar uma orientação à massa de militantes naqueles tempos de luta para se alcançar a elaboração da Constituição da República na Itália. Entretanto, a política nacional italiana viveu majoritariamente esses tempos sob a sombra da política internacional da Guerra Fria.

Os iniciadores de uma nova política não estavam, assim, plenamente livres para fazer acontecer seus desejos e escolhas de suas formações políticas nacionais. Todavia, estava se gestando uma tradição política em que a Itália em disputa entre comunistas e democratas-cristãos passava a contribuir para o avanço das transformações, ou seja, para uma “democracia progressiva”. Muito audacioso era o entendimento de que ambos nasceram do berço da luta comum do antifascismo para superar o sectarismo “esquerda versus direita” na política italiana. Aqui se demarca uma instigante provocação ao militante dos “cancelamentos” nas redes sociais, pois ela se faz sem reflexão da história e muito menos sem a produção de conteúdo programático.

Voltemos às lições de Vacca. A maior preocupação dos comunistas italianos não seria estar no governo, mas contribuir para o isolamento das forças mais retrógradas da política nacional. A vinculação entre nação e democracia na formação da República fez com que a hegemonia dos comunistas na esquerda italiana ganhasse mais força no conjunto da sociedade. Nos capítulos do livro, o leitor terá a oportunidade de compreender como uma ação política se faz necessária tendo como base o conhecimento histórico. Nada de simplificações. Os pronunciamentos de Togliatti e De Gasperi certamente surpreenderão a muitos e deixarão outros com certo saudosismo em relação à “morte” dos grandes dirigentes políticos de espírito nacional.

As páginas de A Itália em Disputa são um estímulo para compreender a vocação do estudo da História em permitir caminhos interpretativos em realidades “paralelas”. Assim, repensar a ideia de “centro-esquerda”, seja na Itália ou em nosso país, é instigante pelo fato de se observar sua construção num tempo de situações políticas e disputas eleitorais muitas vezes acirradas. Por isso, o dramático epílogo do livro nos alerta sobre os perigos dos extremismos que nos rodeiam, ainda mais para aqueles que cultivam o sectarismo como se fosse manifestação da “multidão”.

Vacca. Giuseppe. A Itália em Disputa: comunistas e democratas-cristãos no longo pós-guerra (1943-1978) Campinas/Brasília: Editora da Unicamp/FAP, 2021, 303p; tradução de Luiz Sérgio Henriques.

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/a-grande-politica-na-corda-bamba/

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