Há uma diferença oceânica entre um general de quatro estrelas que galgou a presidência e um ex-capitão baderneiro que também chegou a ser presidente da República. Isso fica muito claro na comparação entre os episódios da demissão de Sílvio Frota e a de Fernando Azevedo. Quando decidiu degolar seu então ministro da Guerra, Geisel previamente assegurou o apoio das principais guarnições militares do país e dos principais comandantes do Exército. Obedeceu uma das leis da guerra: a dissimulação e a surpresa, neutralizando, assim qualquer possibilidade de reação de Sílvio Frota.
Bolsonaro fez o contrário. Articulou o golpe a céu aberto, sem combinar com a cadeia de comando, sem a certeza de que a caserna se submeteria aos seus intentos, com a demissão do ministro da defesa Fernando Azevedo. Militares costumam dar nome às suas operações. O plano de invasão da União Soviética por Hitler se chamava Barbarossa, a da invasão da Normandia Overland. A de Bolsonaro bem poderia se chamar Operação Tabajara, tal o seu resultado desastroso.
Se o objetivo era transformar as Forças Armadas em instituições privadas a serviço de seu projeto de poder, o tiro saiu pela culatra. Em vez de perfilar-se aos seus planos macabros as FFAA se uniram na defesa do seu papel constitucional como instituição do Estado. O inédito pedido de demissão conjunto dos comandantes das três forças tem esse sentido, numa clara demonstração de que a postura profissional do ex-comandante do Exército, general Edson Pujol, sempre esteve respaldada por toda cadeia de comando, composta por 16 generais de quatro estrelas.
Sim, Bolsonaro sai no prejuízo na mais séria crise militar desde 1977. Não só por não ter conseguido seu objetivo de aparelhar as Forças Armadas. Mas porque instalou uma crise que inexistia e que representava até então sua principal base de apoio. O pacto estabelecido em 2018 pelo então comandante Eduardo Villas Boas no qual os militares ingressaram de corpo e alma na campanha do atual presidente na certeza de que controlariam seus “excessos” foi rompido pelo próprio Bolsonaro.
Ainda não está devidamente esclarecido qual será o comportamento de Braga Neto, substituto de Fernando Azevedo. Certamente entrou para atrelar a caserna aos designíos de Bolsonaro. Mas até onde irá, diante da resistência da cadeia de comando? O mais provável é que adote inicialmente uma postura comedida para não tocar fogo no paiol. A ordem do dia sobre 31 de março que assinou teve um tom moderado.
Só a ingenuidade da TV Globo pode considerá-la ruim porque os militares não trataram 1964 como um golpe, não condenaram o AI-5, nem a supressão das liberdades. Isto eles não farão nunca e não nos interessa alimentar esse debate. O positivo é que a nota assinada por Braga Neto era a ordem do dia escrita pelo então ministro da Defesa Fernando Azevedo e ela contém dois pontos positivos. A contextuação do período histórico em que o episódio se deu e o reconhecimento da anistia como importante instrumento para a pacificação do país.
Bolsonaro sai do episódio com o sabor de derrota por ter ignorado a própria história militar brasileira. Desde o advento da República é condição básica para o sucesso do golpe a participação das Forças Armadas como instituição e não apenas de um setor. Todas as tentativas individuais ou de apenas uma corrente militar fracassaram: os 18 do Forte, 1924, Insurreição de 35, a tentativa de golpe dos integralistas em 38, Jacareacanga e Aragarças, entre outros.
Getúlio Vargas implantou o Estado Novo porque contou com as Forças Armadas, como instituição. O golpe de 1964 foi vitorioso porque teve essa característica.
Mianmar não é aqui. Para que um golpe logre êxito, são necessárias condições externas e internas favoráveis, principalmente a última. 1964 aconteceu porque houve uma parte ponderável da sociedade apoiou e participou. Quando Daniel Aarão qualifica 1964 como um golpe cívico-militar não está de todo sem razão.
Sem tais condições, as Forças Armadas não se envolverão em incursões golpistas de Bolsonaro. Dá para pensar um golpe sem o apoio dos empresários? Impossível. Lula não está para os empresários assim como o fantasma do comunismo esteve em 1964. No limite, se não houver uma terceira alternativa, se compõem com Lula porque o governo Bolsonaro é um desastre até para eles.
Existem alguns valores e princípios dos militares que devemos ter em conta. O primeiro deles é a observância à hierarquia, que é basilar para a manutenção da disciplina. De acordo com esse critério, o comandante do Exército é o mais antigo, de acordo com o Almanaque do Exército. A dificuldade de Bolsonaro é nomear um ministro de sua preferência desrespeitando essa norma. Não há general de quatro estrelas “bolsonarista”, embora algum possa ser picado pela mosca azul. Mesmo o seu preferido, general Marcos Freire Gomes, atual comandante do Exército do Nordeste, perfila-se com a postura profissional da cadeia de comando. E para ser nomeado, teria de violar o Almanaque do Exército, “caroneando” quatro generais de quatro estrelas.
O outro valor é o da camaradagem. Isto implica em lealdade com os companheiros. A liderança de Braga Neto será minada porque ele não foi leal com um seu companheiro de ministério – Fernando Azevedo – ao contrário dos três comandantes que se demitiram em desagravo a Azevedo. Braga Neto tem outro problema. Apesar de estar na reserva, é um general de quatro estrelas mais novo do que os que estão na ativa. O problema está criado porque o ministério da Defesa foi “militarizado”. A pasta foi concebida para ser a prevalência do poder civil sobre o poder militar. Por isso, seus comandantes nos governos FHC, Lula e Dilma foram paisanos. A tradição foi rompida por Temer e Bolsonaro.
Não estou dizendo aqui que Bolsonaro não tentará o autogolpe e que não tentará envolver as Forças Armadas em sua aventura. Mas entre querer e poder há uma enorme distância. As chances de sucesso de um golpe a la Trump são muito pequenas, para não dizer nenhuma. Mas ele vai tentar, provavelmente antes da eleição, quando ficar claro que perderá para quem for para o segundo turno.
É risível pensar um golpe apoiado exclusivamente pelas polícias militares. Isto não deu certo nem em 1932, quando a Força Pública de São Paulo era proporcionalmente mais apetrechada do ponto de vista bélico do que são as atuais polícias militares.
Alega-se que Bolsonaro está mais forte porque estreitou os laços com o “centrão”, que agora adentra no Palácio do Planalto por meio da nomeação da deputada Flávia Arruda para a articulação política do governo. Isto serve, até certo ponto e até certo grau, para evitar um pedido de impeachment. Desde sempre o avanço do “Centrão” no aparato governamental é diretamente proporcional ao enfraquecimento do presidente. Foi assim com Dilma e Temer, está sendo assim com Bolsonaro.
Daqui a três meses os políticos começam a se movimentar por aquilo que é seu combustível: a expectativa de poder. Cada vez mais ele foge entre os dedos de Bolsonaro. Nessa toada, se voltarão para Lula, se não for criada uma terceira alternativa.
É possível que tenha dito um monte de besteiras. Não sou um expert em questões militares. Sou apenas um ex-cabo conscrito do Exército. Apenas umas palavrinhas finais.
A oposição presta enorme serviço à nação se não buscar tirar dividendos da crise militar. Sua politização pode levar os militares a se unir no campo oposto. Nesse sentido a iniciativa do PSOL, PT e PSB de entrarem com um novo pedido de impeachment, baseado nas demissões dos quatro militares é ruim. Em vez de unir, vai dividir.
Se alguma frente deve ser costurada no momento, é a ampla frente para que 2022 aconteça. Temos de chegar ao porto seguro da eleição presidencial.