Criminalização de substâncias sempre foi pautada pelo racismo e pela xenofobia
Por conta dos golpes que recebeu na cabeça quando lutava, Maguila desenvolveu encefalopatia traumática crônica, doença degenerativa do cérebro. Apesar da sua situação de saúde, o que virou notícia foi o tratamento da enfermidade com o uso de canabidiol (CBD).
Dentre os avanços estão a ONU ter retirado a maconha da lista de drogas mais perigosas e a Anvisa, excluído o tetra-hidrocanabinol (THC) e o CBD, componentes da Cannabis, da relação de substâncias que não podem ser prescritas ou manipuladas no Brasil. Houve também a aprovação da Lei nº 174/2019 que permite o cultivo de Cannabis para fins de pesquisa e a concessão de habeas corpus coletivo à Cultive, Associação de Cannabis e Saúde, de SP, para que 21 famílias possam plantar maconha em suas casas sem correrem o risco de serem presas.
No ano passado, a Associação de Apoio à Pesquisa e à Pacientes de Cannabis Medicina (Apepi-RJ) já havia obtido a autorização para plantio, realização de pesquisas e fornecimento de medicamentos para pacientes associados. O que continua dificultando o acesso ao remédio é o valor. Um frasco contendo 30 ml é vendido por cerca de R$ 2.300 (com desconto).
Olhando além da perspectiva da saúde, ficam as questões: como a legalização da maconha dialoga com os problemas sociais, raciais e de periferias? Como os cidadãos que contam com um auxílio emergencial para comer poderão pagar R$ 2.000 num medicamento? Quando os remédios da maconha —os de qualidade— chegarão ao Sistema Único de Saúde (SUS)? Como cultivar em um território que sofre frequentemente com operações policiais? Essas perguntas deixam claro que precisamos pensar em alternativas para aqueles que tiveram suas vidas ceifadas e seus direitos violados pela guerra às drogas.
Em Nova York houve a aprovação de um projeto de lei que legaliza o uso recreativo da maconha e prevê verbas às pessoas que receberam sanções da “war on drugs” (guerra às drogas).
Aprovado com cem votos, o projeto prevê a remoção dos antecedentes criminais dos condenados por crimes relacionados à Cannabis e das multas de quem havia sido pego com até 85 gramas (o novo limite de posse individual). A contratação de milhares de pessoas no mercado da Cannabis e a criação de um imposto sobre o comércio legal da substância são outras medidas sugeridas pela legislação.
Sabemos que a classificação das substâncias ilícitas não tem uma motivação exclusivamente relacionada à saúde. Nos Estados Unidos do século 20, os hispânicos eram relacionados à maconha, os chineses, ao ópio e os italianos, ao álcool.
As bebidas alcoólicas, drogas lícitas, são responsáveis pela morte de uma pessoa a cada 10 segundos. Isso significa que seu uso abusivo mata 3 milhões de pessoas por ano.
A criminalização de algumas substâncias sempre foi pautada pelo racismo e pela xenofobia. Em 1830, o consumo de maconha foi proibido no Rio de Janeiro. O objetivo era criminalizar os negros escravizados e libertos que usavam o Pito do Pango (um dos nomes utilizados para a maconha na época).
Desde lá, quase nada mudou. A lei n° 11.343, de 2006, acabou com a pena de prisão nos casos de porte de drogas para consumo pessoal, mas aumentou a pena mínima para tráfico de drogas para cinco anos.
Mas quem define quem é usuário e quem é traficante? O segundo parágrafo do art. 28 é direto: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. A atual legislação brasileira continua incriminando o pobre e o negro.
O sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro gastou mais de R$ 1 bilhão com a guerra às drogas e com violações de direitos. Esse mesmo valor poderia ser usado para custear a educação de 252 mil alunos em uma escola do ensino médio, construir 121 escolas, manter o funcionamento de 81 Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) em favelas e periferias, beneficiar 156 mil famílias com aluguel social ao longo de um ano ou vacinar 18 milhões de pessoas contra a Covid-19. Os dados são do relatório Um Tiro no Pé: O impacto da guerra às drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e de São Paulo, realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). O assunto foi pauta nesta mesma coluna há duas semanas com um texto de Raull Santiago, integrante do Coletivo Papo Reto e do PerifaConnection.
Pensar em uma política de drogas que repare os danos causados por décadas de violações de direitos e violências é urgente. São inúmeros os impactos da guerra às drogas no cotidiano dos moradores de favelas e de periferias. Ano passado, durante o primeiro ano da pandemia e isolamento social, somente o conjunto de favelas da Maré, no Rio, enfrentou 16 operações. Durante três dias, as escolas tiveram o funcionamento interrompido e por oito dias as atividades nas unidades de saúde foram suspensas. Vale destacar que a medida da ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) das Favelas, que restringe operações policiais durante a pandemia, já havia sido estabelecida.
O encarceramento em massa também é fruto dessa guerra fracassada. O Brasil é um dos três países que mais encarceram pessoas no mundo. Só no primeiro semestre de 2020, havia cerca de 760 mil pessoas encarceradas. Mais de 32% dos crimes eram relacionados às Leis de Drogas, de acordo com dados do Sisdepen (Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional).
Não podemos deixar o debate sobre reparação para segunda ordem ou tratar como se fosse uma pauta secundária. Sem essa discussão qualquer política de drogas continuará racista. Pensar em formas de reparação aos principais alvos da guerra às drogas ainda é um sonho no Brasil.
*Thaynara Santos é jornalista e co-fundadora do Movimentos, organização favelada que discute política de drogas a partir da perspectiva das juventudes periféricas.