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Zeina Latif: As curvas da estrada
Tivemos uma campanha eleitoral que pouco discutiu os graves problemas do Brasil
O ano de 2018 foi decepcionante, e a culpa não foi só do governo. O ano começou enterrando de vez as chances de aprovação da reforma da Previdência, que já era pouco provável. A verdadeira razão não foi a intervenção no Rio de Janeiro, que impede aprovação de matérias constitucionais, mas sim a forte oposição de corporações do setor público e sua imensa capacidade de pressão.
A segunda decepção foi a modesta recuperação da produção e do emprego. O primeiro trimestre frustrou as expectativas, mas não a ponto de sepultar as chances de um bom desempenho da economia ao longo do ano, principalmente considerando a taxa de juros do Banco Central em patamar inédito e a melhora da situação financeira de empresas e consumidores. No entanto, alguns choques afetaram a economia. A greve dos caminhoneiros e a reação equivocada do governo implicaram perdas e custos ao setor produtivo. O difícil quadro internacional também cobrou seu preço. De quebra, ainda que menos importante, o BC interrompeu precocemente o corte da taxa Selic.
A terceira decepção foi a suscetibilidade da sociedade a discursos populistas, algo que parecia estar atenuado. Uma importante evidência foi o apoio à greve dos caminhoneiros, que acabou fortalecendo o movimento. Talvez esse tenha sido o primeiro sinal de possíveis surpresas na eleição.
Finalmente, tivemos uma campanha eleitoral que pouco discutiu os graves problemas do Brasil, principalmente a dos finalistas do primeiro turno; justamente aqueles que deveriam ter maior compromisso em deixar claro os desafios do País. De um lado, a negação dos problemas e dos erros de governos anteriores. De outro, a mensagem equivocada de que com combate à corrupção e vontade política se resolveriam os problemas econômicos. O discurso superficial da campanha aumentou o desafio do próximo presidente.
Coroando o ano difícil e com poucos avanços na pauta legislativa, assistimos a retrocessos neste final de ano, com a aprovação no Congresso de várias pautas-bomba com impacto fiscal relevante, sem que os futuros times econômico e político se organizassem para evitá-las.
Houve algumas boas notícias em 2018 que merecem registro. A inflação manteve-se contida e o BC conservou sua serenidade, não seguindo a recomendação de muitos analistas para elevar a taxa de juros nos momentos de estresse nos mercados. Rapidamente ficou claro que teria sido um equívoco, sendo que o ano fechará com a inflação sensivelmente abaixo da meta.
A julgar pelos elementos acima, poderia ter sido um ano ainda mais difícil. Ocorre que o mercado financeiro deu o benefício da dúvida à política, nutrindo a esperança de que o próximo presidente entregará uma boa reforma da Previdência. Basta observar a performance da Bolsa, que fechará o ano no campo positivo, distanciando-se das dos demais emergentes. Pelos nossos modelos, a correção do dólar foi muito mais causada por fatores externos do que domésticos.
Depois da espera, a expectativa é que o governo consiga entregar em 2019 as reformas essenciais para que o País volte a crescer.
A sociedade não aceita retrocessos, como a volta da inflação e uma desaceleração da economia. Mais ainda, aguarda uma melhora das condições econômicas e dos serviços públicos. O que a sociedade não sabe é que sacrifícios serão necessários, como na mudança das regras de aposentadoria. Pelo menos espera que o sacrifício seja maior para quem tem mais privilégios e pode mais.
As curvas que dificultaram o ano de 2018 estarão presentes em 2019, pela oposição de grupos organizados e a resistência da sociedade a reformas estruturais, o que torna a articulação política desafiadora.
Não sabemos ainda o plano de rota do próximo governo, mas a direção parece correta. O diabo, porém, mora nos detalhes. É crucial o cuidado no desenho das políticas públicas e o diálogo com as partes envolvidas, evitando o tom inquisidor presente em alguns discursos. Que o motorista seja habilidoso e dirija com cuidado.
Zeina Latif: Erros do tipo Macri e Macron
Bolsonaro necessita de uma estratégia precisa para a reforma da Previdência
O futuro ministro da Economia está quieto. Depois das falas polêmicas e de manifestações que sugeriram conhecimento pouco profundo dos desafios fiscais, Paulo Guedes sabiamente se recolheu e reagiu bem aos alertas. Está quieto, mas não inerte. Seus movimentos recentes foram precisos, como na nomeação de Marcelo Guaranys, Rogério Marinho e Leonardo Rolim, que são profissionais com perfis complementares e fazem jus a um título de “time dos sonhos”. Combinou-se conhecimento da máquina pública, experiência política e domínio técnico do tema que é prioritário, a reforma da Previdência.
Seria importante Guedes conter as falas ambíguas e equivocadas de Bolsonaro e do núcleo duro que o cerca. A retórica alimenta a percepção de que o presidente eleito não tem suficiente clareza sobre a insustentabilidade da Previdência e suas regras injustas. Adquirir esse conhecimento será parte de sua missão de defender politicamente essa agenda. Caso contrário, será improvável o apoio do Congresso. Na política, as palavras têm peso.
Escolhas precisam ser feitas. Mais complicado ainda é fazê-lo em um ambiente de incertezas. O que é melhor: (1) propor uma reforma ambiciosa que viabilize o cumprimento da regra do teto e o ajuste fiscal dos Estados, mas correndo o risco de ter uma tramitação lenta e desgastante politicamente, ou (2) uma reforma diluída, como sinalizado pelo presidente eleito, com trâmite mais rápido, mas com risco fiscal elevado?
É possível que se opte pelo meio do caminho, fatiando a reforma, separando as matérias constitucionais das infraconstitucionais, o que é positivo, e também avançando por etapas nos diferentes regimes de militares, policiais, servidores e setor privado, como proposto por Paulo Tafner e outros especialistas. Porém, o risco de o Congresso só aprovar uma ou outra fatia, e não o todo, resultando em uma reforma insuficiente, precisa ser considerado pelos estrategistas políticos.
A escolha de Bolsonaro será o primeiro teste de sua convicção sobre a necessidade da reforma. A capacidade de diálogo no Congresso, o teste principal. Não temos essas respostas. O ambiente de incertezas, portanto, ainda vai prevalecer por um tempo.
O que Bolsonaro precisa evitar são os erros de Macri e Macron, ambos presidentes com perfil reformista, eleitos em uma onda de renovação da política e contando com apoio popular. Agora ambos sofrem grande desgaste.
O argentino Mauricio Macri iniciou o mandato corrigindo importantes distorções na política econômica. No entanto, por contar com uma base estreita de apoio no Congresso – menos de 30% dos parlamentares quando iniciou seu mandato em 2016 –, foi forçado a negociar com governadores e a ceder. O gradualismo no ajuste fiscal parecia o único caminho possível naquele momento. Nas eleições parlamentares de 2017, Macri conseguiu aumentar seu apoio no Congresso e aprovar uma reforma da Previdência aguada. O resultado é o desarranjo do ambiente macroeconômico, com inflação acima de 40% e mais um acordo com o FMI.
O francês Emmanuel Macron, impulsionado pelas mídias sociais e com apoio no Congresso, conseguiu avançar com seu ímpeto reformista. Agora sofre o desgaste decorrente da percepção da sociedade de que ele protege os mais ricos. A elevação do preço de combustíveis, decorrente do imposto sobre carbono, penalizou uma classe média que se sente desprestigiada pelos políticos. Faltou diálogo e o devido cuidado com políticas que mexem diretamente no bolso dos eleitores. Protestos eclodiram. Macron recuou, mas a insatisfação persiste, enquanto outras reformas, como da Previdência, ficaram comprometidas.
Bolsonaro necessita de uma estratégia precisa para a reforma da Previdência. Não pode ser nem muito tímida nem muito desigual. E diálogo é essencial. Grupos que se sentem injustiçados podem reagir. O gradualismo e o tratamento desigual podem ser convenientes no curto prazo, mas cobram seu preço adiante.
*Economista-chefe da XP Investimento
Zeina Latif: Luz amarela
A fraqueza da indústria, se persistir, vai contaminar cedo ou tarde os demais setores
O potencial de crescimento do Brasil está bastante deprimido. Pode estar abaixo de 2%, devido à produtividade estagnada e a tantos equívocos de política econômica nos últimos anos. O governo Temer promoveu importantes avanços que abriram espaço para um ciclo de recuperação da economia. O fôlego desse movimento dependerá do empenho do próximo governo para dar continuidade e acelerar a agenda de reformas.
Há um misto de confiança e cautela entre empresários com o cenário econômico. O mesmo vale para o mercado financeiro. Basta analisar o desempenho modesto dos preços de ativos desde a eleição, e com alguma volatilidade, contrariando a expectativa de um “rally” nos mercados após a eleição de Jair Bolsonaro.
Por um lado, há a avaliação de que o novo governo contará com a força das urnas, diferentemente do governo de transição de Temer; buscará políticas públicas na direção correta para melhorar a ação estatal; e adotará uma nova forma de fazer política que poderá elevar a qualidade e a eficiência de políticas públicas. Seria um governo que teria potencial de entregar mais reformas estruturais do que o de Temer.
De outro lado, há uma boa dose de cautela por se reconhecer a difícil combinação de fragilidade do quadro econômico, urgência de reformas impopulares e um núcleo de poder com pouca experiência administrativa e política, e com potenciais conflitos entre si.
O risco de uma agenda tímida de reformas é concreto, a julgar pela sinalização do núcleo duro do futuro governo. Nesse caso, não haveria uma efetiva aceleração do crescimento. Com a fragilidade do regime fiscal, não seria possível garantir taxas de juros do Banco Central baixas como as atuais.
Importante colocar na conta as sequelas da crise econômica ainda não superadas e que têm impacto na confiança dos empresários e consumidores. Basta olhar o ainda elevado patamar de pedidos de recuperação judicial e os frágeis números do mercado de trabalho.
Como se não bastasse, houve vários choques que fragilizaram ainda mais o setor produtivo e frustraram o crescimento do PIB em 2018. Tivemos a greve dos caminhoneiros, o indefensável tabelamento do frete, a pressão cambial (decorrente muito mais do ambiente externo do que das incertezas eleitorais) e a crise argentina reduzindo as exportações. Até incêndio em importante refinaria da Petrobrás teve. Não seria exagero afirmar que sem esses choques o crescimento em 2018 teria sido próximo de 2,5%.
O termômetro da capacidade de crescimento será a dinâmica da indústria. A indústria, que é o setor mais sensível ao custo Brasil, foi o primeiro setor a sentir a piora do quadro econômico, já em 2012, e o primeiro a sair da crise.
Os números recentes não são bons, praticamente interrompendo a tendência de recuperação, ainda que lenta. A indústria, como sempre, foi prejudicada pelos choques recentes. A produção industrial registrou crescimento de apenas 1,8% entre janeiro e outubro deste ano em relação ao mesmo período de 2017, ano em que o crescimento foi maior, de 2,6%. A indústria nitidamente perdeu o ritmo em 2018, enquanto era esperada uma aceleração por conta da redução dos juros pelo Banco Central.
O comércio varejista, por sua vez, conseguiu acelerar em 2018, diante da recuperação da massa salarial e da volta do crédito. No acumulado de 2018 até setembro, o crescimento do volume de vendas é de 5,2% ante 4% em 2017. Os serviços seguem no campo negativo, em parte pela própria fraqueza da indústria, mas exibem modesta tendência de melhora. Acumulam queda de 0,4% ante recuo maior de 2,8% em 2017.
Elementos transitórios, duradouros e estruturais se misturam e geram incertezas sobre a dinâmica econômica. Ha razões para posturas cautelosas.
A fraqueza da indústria acende luzes amarelas, pois se persistente, vai contaminar cedo ou tarde a performance dos demais setores, a geração de vagas e o aumento do investimento.
*Zeina Latif é economista-chefe da XP Investimentos
Zeina Latif: Ainda somos os mesmos
Há uma renovação no Brasil, mas muito mais fruto das circunstâncias
O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, tem conseguido atrair profissionais respeitados para o time econômico, o que não surpreende. Esse tem sido o destaque positivo nas sinalizações do novo governo. No entanto, o passado ensina que é necessário engajamento e compromisso do presidente da República com a agenda econômica para se avançar em reformas. O ministro não pode ficar falando sozinho. Os sinais dados por Jair Bolsonaro, por ora, são insuficientes.
Muitos alegam que tudo será mais fácil com o Congresso renovado e a popularidade elevada de Bolsonaro (a pesquisa da XP indica 57% de aprovação do presidente eleito). No entanto, nem o Congresso renovou tanto assim (segundo cálculo de Bruno Carazza, quando se leva em conta os novos congressistas que já eram políticos, a renovação foi de 22,8%, e não de quase 50%), nem a popularidade elevada é garantida ao longo do tempo.
Políticos experientes avaliam que a lua de mel no Congresso não dura mais de seis meses. É necessário, pois, aproveitar essa janela para avançar rapidamente com uma boa reforma da Previdência, o que fortaleceria o capital político de Bolsonaro, abrindo espaço para mais reformas adiante.
Antes de culpar o Congresso por nossas mazelas, é importante lembrar a responsabilidade da sociedade. Um exemplo recente é a não reeleição de políticos engajados nas reformas estruturais de Temer, como a regra do teto, a reforma trabalhista e a nova taxa de juros do BNDES, todas medidas na direção certa. Os eleitores puniram quem trabalhou direito.
Além disso, apesar dos novos ventos favoráveis a políticas de cunho liberal, sua implementação enfrenta resistências. Afinal, quem não gosta de uma proteção, uma regra tributária especial, um subsídio? Isso sem contar a natural resistência dos servidores públicos a mudanças de regras e a independência dos Poderes na gestão dos seus orçamentos. O liberalismo é bom, desde que seja para os outros. Tudo isso reverbera no Congresso.
As negociações políticas não serão fáceis. A usual aglutinação de poder em torno do presidente eleito parece mais discreta do que o usual. No Congresso, a esquerda não encolheu na última eleição, e o diálogo com ela poderá ser ainda mais difícil. Afinal, a campanha eleitoral agressiva cobra seu preço. O centro, este sim encolheu, sendo justamente o grupo com o qual o diálogo seria mais construtivo. E a direita que emergiu é mais direita nos costumes do que liberal na economia.
Diante dessas questões, a boa vontade do próximo Congresso dependerá, em boa medida, do envolvimento e do compromisso do futuro presidente com a agenda de reformas, assumindo o custo político envolvido. É importante que Bolsonaro utilize seu talento na comunicação nessa empreitada, ao mesmo tempo que dialoga com o Congresso.
Há limites ao estilo de Bolsonaro de delegar, que se reflete na montagem do ministério – com exceção da indicação de Sergio Moro para a Justiça. Na política, pouco pode ser delegado. A responsabilidade de defender as reformas precisa ser do presidente e de seu partido, e não apenas do ministro da Economia. No caso de o presidente eleito se esquivar e o PSL negar as reformas impopulares, os demais partidos e bancadas vão lavar as mãos. Foi assim no segundo mandato de Dilma. E daqui para frente, não haverá o partido da governabilidade para ajudar a aprovar as reformas.
Quanto aos militares que participarão do próximo governo, talvez eles se tornem o elemento moderador. Os militares precisarão contribuir para o avanço da reforma da Previdência, incluindo as discussões para a mudança de regras de aposentadoria das polícias, algo essencial ao ajuste fiscal dos Estados. Ajudaria se eles próprios propusessem reformas em suas regras. Ora, se Bolsonaro, que conta com o apoio das polícias e de militares, não conseguir avançar nessa agenda, quem conseguiria?
Há uma renovação no Brasil, mas muito mais fruto das circunstâncias. Nós não mudamos tanto assim.
*Zeina Latif é economista-chefe da XP Investimentos
Zeina Latif: A palavra de ordem é foco
Não se pode falhar na aprovação de uma reforma da Previdência
Muitas falas de Jair Bolsonaro ainda lembram discursos de campanha. Não focam naquilo que é mais relevante e abordam temas superados ou que não demandam ação estatal. O presidente eleito tem grande capacidade de comunicação, mas precisa dar o devido peso aos temas, conforme seu grau de importância. Não basta se comunicar. É necessário definir objetivos e estratégias, para assim conquistar o apoio da sociedade à urgente agenda de reformas.
Um exemplo recente foi sua defesa de maior transparência do BNDES. Todavia, o grau de abertura de informações atualmente é equivalente ao dos bancos privados, respeitando a lei de sigilo bancário. Com sua fala, Bolsonaro passa para a sociedade a ideia equivocada de que nenhum ajuste foi feito no banco nos últimos anos, enquanto perde a oportunidade de discutir seus reais desafios.
Tem havido muitos avanços no BNDES. O principal foi em 2017 com a mudança do cálculo da taxa de juros cobrada nos empréstimos, com a substituição da TJLP pela TLP, sendo a primeira uma decisão discricionária do governo e a segunda o reflexo das condições de mercado. Se houver intenção de emprestar a taxas mais baixas, será necessário obter aprovação do Congresso para o subsídio a ser concedido. Uma combinação saudável de transparência, zelo com os cofres públicos e deliberação da sociedade.
O temor de muitos de que a mudança faria os investimentos caírem não se materializou. Houve importante substituição de empréstimos do banco por outras fontes de financiamento no mercado de capitais e no mercado internacional, principalmente para empresas maiores. Segundo o Centro de Estudos do Mercado de Capitais (Cemec), 2017 foi possivelmente o melhor ano da história para esse mercado, tendo sido responsável por 13% do financiamento do investimento, valor recorde na série iniciada em 2011.
É verdade que empresas menores, que têm dificuldades para acessar o mercado de capitais e os recursos externos, encolheram seu endividamento. Há espaço, no entanto, para crescimento do crédito privado, como nas cooperativas de crédito e fintechs.
É melhor o BNDES focar nas privatização e em setores onde não há interesse do setor privado, mas cujo investimento beneficiaria a sociedade. É o caso da infraestrutura de setores pouco consolidados, como o saneamento. O banco ainda concorre com o mercado de capitais em muitos segmentos, como no Finem, o que implica alocação equivocada de recursos.
As matérias que saíram na imprensa sugerem também a necessidade de ajuste no foco das propostas do próximo time econômico. Fala-se em ampliar a capacidade do banco de antecipar a devolução de recursos ao Tesouro Nacional. Essa política tem sido bem encaminhada, com R$ 310 bilhões da dívida com a União devolvidos antecipadamente até o fim de 2018.
O tema é relevante à luz da regra constitucional que limita o espaço da União para emitir dívida pública, mas é assunto menor diante dos desafios do BNDES e, certamente, da necessidade de um ajuste estrutural para conter o crescimento das despesas do governo.
Fala-se também da tarefa de Joaquim Levy – que estará à frente da instituição – de contribuir na montagem de um plano de socorro aos Estados. Já houve em 2017 um plano de renegociação de dívida que incluiu empréstimos do banco e há grandes restrições para emprestar dinheiro novo. Além disso, a natureza da crise dos Estados é estrutural, associada aos gastos com a folha. Este precisa ser o foco do novo governo.
É possível que a agenda liberal de Paulo Guedes sofra desvios, dado o tamanho do desafio fiscal. O que não se pode é falhar na aprovação de uma reforma da Previdência que também busque uma solução da crise dos Estados, o que demandaria rever os regimes especiais de aposentadoria de professores e policiais. Não avançar nessas questões deixará a União ainda mais vulnerável à pressão dos Estados por recursos. Não faltam “pautas-bomba” no Congresso.
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*Economista-chefe da XP Investimentos
Zeina Latif: O semblante do político
A bronca é generalizada e vai além da crise econômica, reclama-se da ação estatal
Com as urnas apuradas, vieram os discursos do vencedor e do derrotado.
O derrotado sorria e exibia um semblante leve, quase aliviado. Um desavisado acharia que ele teria ganho a eleição. Fernando Haddad provavelmente sabe que o PT teria muitas dificuldades para governar e fazer o País crescer. Além do isolamento político do partido, a agenda petista não dá conta dos desafios da economia. E com 2022 logo ali, o partido estará na confortável posição de oposição. Que ela seja responsável, pensando no bem do País.
O vencedor, por sua vez, exibia semblante tenso e abatido. O desafio de governar passou a pesar sobre seus ombros. O Brasil não é um país fácil e o momento atual é particularmente difícil.
Não se sabe ainda qual o escopo da aguardada agenda liberal. As falas do futuro ministro da Economia são contundentes, mas ainda superficiais e conflitantes com as dos conselheiros políticos de Jair Bolsonaro. Caberá ao futuro presidente arbitrar os conflitos, superando seu desconhecimento de políticas públicas e a inexperiência na gestão pública dele e dos que o rodeiam.
A pouca experiência do novo governo seria menos preocupante não fossem o quadro econômico frágil, as reformas fiscais urgentes e a sociedade ansiosa por mudanças. Uma combinação assim não era vista, possivelmente, desde o governo do presidente Fernando Collor.
Segmentos da classe média e do setor produtivo são os que mais depositam esperanças no futuro presidente, a julgar pelas clivagens sociais nas pesquisas de intenção de voto e pelo resultado das urnas por regiões do País. São os que sentiram mais intensamente a crise econômica e sofrem muito com o mau funcionamento do Estado brasileiro.
A classe média, que não conta com redes de proteção social, perdeu status. Precisou rebaixar seu padrão de consumo diante do desemprego de membros da família e exibe ainda elevado volume de dívidas em atraso como proporção de sua renda (4% considerando apenas a dívida bancária). A inflação baixa, certamente, ajudou na melhora da confiança do consumidor. O medo do desemprego, no entanto, continua em níveis máximos, afligindo mais de 65% da população, de acordo com pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Empresários que viram suas empresas e patrimônio ameaçados engrossam o coro dos descontentes. Apesar da melhora das condições financeiras das empresas desde o fim de 2016, os sinais de alerta ainda estão acesos. Há ainda volume desconfortável de dívidas em atraso como proporção do faturamento e os pedidos de recuperação judicial não estão recuando em relação a 2017. A capacidade ociosa na indústria e nos serviços está em patamares recordes, em torno de 20%. Não se voltou à normalidade, o que limita a geração de empregos, ainda muito concentrada na informalidade.
A bronca é generalizada e vai além da crise econômica. Reclama-se da ineficiente e injusta ação estatal, sendo que, sem crescimento, tudo fica mais difícil. O Estado brasileiro maltrata o capital privado e protege alguns poucos setores. Bolsonaro soube captar esse sentimento.
O médio produtor é o mais castigado, pois sofre com o elevado custo Brasil, sem conseguir diluí-lo pela menor escala de produção, e não conta com benefícios tributários como as pequenas empresas. Sofrem com o Estado intervencionista, que muda regras com frequência e sem critérios, mas que é incapaz de prover serviços de qualidade e segurança jurídica. Não faltam reclamações de abuso de poder e complacência dos últimos governantes com os excessos de alguns grupos.
Um Estado que funcione melhor é o desejo de todos. No entanto, não se trata de ter mais recursos públicos ou simplesmente autoridade, ainda que ela seja necessária. Um exemplo recente da sua falta foi a ausência de responsabilização de agentes públicos pelo incêndio do Museu Nacional.
Será necessário apoio no Congresso, diálogo com o sistema judiciário e reforço no arcabouço institucional, definindo as responsabilidades dos órgãos e agências públicas.
Um presidente pode menos do que se pensa.
*Economista-chefe da XP Investimentos
Zeina Latif: De quem será a fatura?
A renovação política no Congresso Nacional poderá atrasar o ajuste fiscal
Nos últimos anos, muitos governadores evitaram o necessário ajuste das contas públicas, devido ao calendário eleitoral. Para alguns o cálculo deu errado e a resposta veio das urnas. É o caso de Minas Gerais, que nem sequer consegue pagar pontualmente a folha do funcionalismo, e tem o atual governador fora da disputa do segundo turno. Do outro lado, não parece coincidência que governadores que tiveram gestão mais responsável foram premiados com a reeleição já no primeiro turno, como Camilo Santana (PT), do Ceará, e Renan Filho (PMDB), de Alagoas. O mesmo poderia ter ocorrido no Espírito Santo, não fosse a desistência de Paulo Hartung (PMDB) de disputar a reeleição.
A situação financeira dos Estados é grave. Muitos não estão cumprindo o limite legal de comprometer até 60% da receita corrente líquida com a folha na soma dos três Poderes, quando se inclui os gastos com terceirizados e o imposto de renda sobre a folha. Informações preliminares apontam que o número de Estados nessa situação aumentou sensivelmente em 2017.
Se os números falam alto, a realidade grita. É visível o colapso dos serviços públicos, com muitos Estados enfrentando dificuldades para prover serviços básicos e honrar compromissos.
Há Estados em situação crítica, como o Rio de Janeiro, que está em regime de recuperação fiscal, suspendendo o pagamento da dívida ao Tesouro em troca de medidas de ajuste fiscal. O governador Pezão conseguiu algumas vitórias, mas luta praticamente sozinho. Exemplo disso foi a decisão do Legislativo de aprovar um aumento para servidores do Judiciário.
O Rio Grande do Sul está na fila de um acordo com a União e Minas Gerais poderá entrar, sendo que ambos conseguiram liminares no STF para suspender o pagamento da dívida ao Tesouro. Contratos foram rasgados.
A principal medida de ajuste dos Estados terá de vir do governo federal, que é a reforma da Previdência. Afinal, em torno de 40% do gasto com a folha decorre de pensões e aposentadorias. O valor vai aumentar com o envelhecimento do funcionalismo, lembrando que professores e policiais contam com regras mais generosas de aposentadoria e pesam bastante nos orçamentos estaduais. O governo Temer defendeu sozinho a reforma. Os governadores se esquivaram com medo das urnas.
O outro lado da moeda é a pressão dos governadores para postergar o acerto de contas. Em 2016, muitos obtiveram liminares do STF para permitir que as dívidas com a União fossem calculadas com juros simples, e não compostos. Imaginem se o Tesouro resolvesse fazer o mesmo com os títulos da dívida pública. O nome para isso seria calote.
Não satisfeito, em abril de 2016, o STF estabeleceu um prazo de 60 dias para a União renegociar um acordo da dívida e impediu o Tesouro de impor aos Estados sanções por inadimplência. O STF desequilibrou a negociação entre as partes, com prejuízo para a União.
Para piorar, o acordo de renegociação postergando o pagamento da dívida sofreu grande revés na Câmara, que aprovou o projeto, mas retirou as chamadas contrapartidas, como o congelamento de salários, contratações e promoções, e o aumento da contribuição previdenciária.
Há ainda o imbróglio da Lei Kandir, de 1996, que isenta as exportações do ICMS, um imposto estadual. Os governos dos Estados defendem compensação de R$ 39 bilhões ante os R$ 3,9 bilhões atuais, enquanto a União contesta o cálculo. O STF determinou que o Congresso regulamente a lei até novembro deste ano. Esta é uma pauta-bomba que precisará ser contida pelo novo presidente.
A renovação política poderá atrasar o ajuste fiscal e dificultar o convencimento das bancadas estaduais no Congresso quanto à necessidade de reformas, pela inexperiência administrativa e política. Mais grave, Estados problemáticos, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, poderão ser governados por novatos.
O jogo de empurra precisa acabar, e rapidamente. O próximo presidente precisará ser o líder dessa agenda, incluindo o diálogo com o STF. Se falhar, ficará com a fatura.
* Zeina latif é economista-Chefe da XP Investimentos
Zeina Latif: Corrida maluca
O problema é a ausência de reflexão e a incapacidade do PT de modernizar sua agenda
Sobram truques, oportunismo e trapalhadas nessa corrida eleitoral. Difícil dizer o que é pior: o silêncio de Jair Bolsonaro sobre temas básicos de economia ou a incapacidade do PT de renovar sua agenda econômica.
Bolsonaro exerce seu 7.º mandato de deputado federal desde 1991 e já passou por 9 partidos. Apesar disso, ele se apresenta como “cara nova” e antiestablishment. O marketing parece funcionar, ironicamente, devido à sua exígua atividade parlamentar.
Em um país com tantos desafios, surpreende um parlamentar tão longevo ser principiante. Ele insiste, pois, em delegar ao coordenador de seu programa econômico, Paulo Guedes, as questões centrais de seu plano de governo, sendo que a agenda de cunho liberal de Guedes contrasta com sua atuação no Congresso. Isso alimenta as incertezas de como seria seu governo de fato.
Um estudo da XP, elaborado por Victor Scalet, sobre a atuação do parlamentar aponta que 46% das suas proposições tiveram cunho corporativista, com destaque para a defesa de militares e profissionais de segurança. Outros 10% vão para temas relacionados a porte de armas, que ganharam relevância mais recentemente. A segurança pública, curiosamente, não foi contemplada.
Bolsonaro foi contra as reformas estruturais, a começar pela oposição ao Plano Real. E assim seguiu para a quebra dos monopólios do petróleo e das telecomunicações e as reformas administrativa e da Previdência na gestão Fernando Henrique Cardoso.
Bolsonaro diz ter mudado de opinião. Não há problema nisso. É o que fazem políticos comprometidos ao se defrontarem com seus equívocos. Mas, se ele mudou, o que exatamente pensa? O eleitor está no escuro em relação às suas reais pretensões.
Aprendemos com a experiência malsucedida de Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma Rousseff em 2015, a falta que faz a convicção do presidente. Não basta delegar.
Fernando Haddad, possível candidato e coordenador da campanha do PT, silencia sobre a culpa do governo Dilma pelo desastre econômico. Sem surpresas aqui. O problema é a ausência de reflexão e incapacidade do PT de modernizar sua agenda, diferente de outros segmentos da esquerda que buscam uma renovação.
Os “choques liberais” que Haddad promete não são observados em suas propostas, que são intervencionistas, imediatistas e superficiais. Lembram o governo Dilma, com improvisos, busca de atalhos e pouco apreço a diagnósticos cuidadosos. Distanciam-se bastante do primeiro mandato de Lula, que seguiu uma política econômica responsável e mais moderna.
Haddad tem o mérito de admitir a importância da reforma da Previdência, ao contrário de Marcio Pochmann. Suas propostas econômicas, porém, são incompreensíveis.
A proposta de elevar a tributação de bancos com juros mais altos reflete uma incompreensão das principais causas do spread elevado – inadimplência alta e cara devido à insegurança jurídica, carga tributária, crédito direcionado, dificuldade de acesso a informações e questões regulatórias – e de como funciona a economia. Se a medida for implementada – algo particularmente difícil por conta da complexidade do mercado de crédito –, a oferta de crédito diminuiria e o spread voltaria a subir com o tempo. Tiro no pé. Melhor implementar a agenda proposta pelo Banco Central para redução do spread bancário. Não precisa inventar.
Outra medida equivocada seria a venda de reservas internacionais para financiar investimentos, o que demandaria mudanças nas regras que regem sua utilização. O impacto seria pontual e muito limitado, pois o problema do Brasil não é a falta de recursos, mas sim o pouco apetite para investimentos produtivos em um país caro e onde as regras do jogo são complexas e mudam com frequência.
Ao final da corrida, a esperança é que Bolsonaro tenha realmente mudado de opinião e que evite temas econômicos por reconhecer seu despreparo. E com Haddad, a esperança de que não consiga implementar o que pretende.
*Zeina Latif é economista-chefe da XP Investimentos