Yascha Mounk
Yascha Mounk: Verniz de invencibilidade de Trump se desfaz com vitória de Biden
Republicano lançou tentativa de golpe mais incompetente desde 'Bananas', de Woody Allen
O presidente Donald Trump deixou uma coisa dolorosamente clara: depois de deixar a Casa Branca a contragosto, ele vai seguir fazendo tudo o que puder para continuar a ser notícia. Vai postar insultos e teorias conspiratórias no Twitter. Talvez abra seu canal de televisão próprio. E, segundo membros de seu círculo interno, é possível que se candidate a presidente em 2024.
Após meia década sob sua influência, muitos observadores políticos imaginam que Trump vai conseguir conservar a atenção da nação voltada para ele. Entendo por quê. Uma minoria considerável dos americanos acredita que a eleição foi fraudada e permanece profundamente devota ao presidente que está de saída.
Mesmo agora que a derrota de Trump libertou o Partido Republicano de seu captor, os políticos republicanos parecem estar sofrendo de um caso grave de síndrome de Estocolmo. E a única área na qual o 45º presidente já comprovou reiteradamente possuir talento real é sua capacidade de se manter no centro da atenção pública.
Mas, embora Trump ainda possa acabar se mostrando uma influência tão dominante sobre a política na década de 2020 quanto foi na década de 2010, esse resultado é menos provável do que muitos supõem.
Sobram teorias para tentar explicar a ascensão de Trump ao poder em 2016. De acordo com algumas, ele falou em nome dos economicamente despossuídos. Segundo outras, suas mensagens racistas disfarçadas atraíram eleitores preconceituosos.
Entretanto, embora as duas hipóteses ajudem a explicar parte de sua atração, a verdade é muito mais simples: milhões de americanos que não pensam muito em política encaravam Trump como um vencedor, um realizador.
Desde seus primeiros momentos de fama local em Nova York, ele vem moldando sua imagem pública cuidadosamente para dar ênfase a seu poder e seu sucesso.
Os insiders de Manhattan sabem que a verdadeira elite da cidade sempre o desprezou. Mas os leitores de seu livro “A Arte da Negociação” o encaram como exemplo rematado de um negociador dominante que sabe como usar seu poderio financeiro.
Jornalistas de negócios sabem que muitos dos empreendimentos de Trump foram à falência em pouco tempo e que ele poderia estar muito mais rico agora se tivesse simplesmente aplicado sua herança no mercado acionário. Mas, para a maioria dos americanos, o apresentador de “O Aprendiz” é a personificação de um empreendedor que construiu um grande império graças a seu incrível tino para os negócios.
Agora, porém, o verniz de invencibilidade de Trump está se desfazendo. Ele perdeu sua tentativa de reeleição e lançou a tentativa de golpe mais incompetente desde “Bananas”, de Woody Allen. Ele pode se enfurecer e falar loucuras sobre o que aconteceu em novembro, mas não poderá impedir seus seguidores de verem Joe Biden tomar posse em janeiro. O medo de qual pode ser seu próximo passo está dando lugar às gargalhadas. Trump está parecendo mais fraco e assustado a cada dia que passa.
Tampouco está claro se o presidente em final de mandato vai conseguir construir uma “Rede Trump de Jornalismo”. Se ele tiver um programa diário de uma hora na televisão, seus fãs mais devotos com certeza vão assistir. Mas, para ser comercialmente viável, seu canal teria que ampliar aquele público fundamental, atrair outros apresentadores que fossem capazes de conservar a atenção do público, contratar jornalistas que pudessem cobrir de fato o que acontece no mundo e atrair publicidade de empresas comuns.
Competir com a Rede Fox não seria fácil para ninguém que estivesse lançando uma nova rede de jornalismo conservador. Dado o histórico de incompetência de Trump tanto nos negócios quanto em seu cargo público, parece improvável que ele tivesse êxito nessa empreitada.
Tampouco é evidente que Trump pudesse realisticamente se candidatar à Presidência outra vez. Em 2024 ele pode estar falido, na prisão ou com a saúde muito fragilizada. E, mesmo que esteja em condições de disputar a candidatura presidencial republicana, ele não necessariamente a conquistaria.
O Partido Republicano teve uma composição ideológica relativamente estável no último meio século. O chamado “banquinho de três pés” unia conservadores sociais, defensores do livre mercado e figuras de linha dura na política externa, formando uma aliança intranquila, mas durável. Mas, precisamente pelo fato de a composição política do partido ser tão heterogênea, seus líderes mais influentes —de Richard Nixon a George W. Bush e de John McCain a Donald Trump— não guardam muita semelhança uns com os outros.
Que ninguém se engane: ainda é muito cedo para encarar Trump como carta fora do baralho. Pode ser que os americanos continuem a acompanhar seu feed no Twitter com horror ou fascínio pelos próximos quatro anos. Talvez os eleitores das primárias escolham Trump como candidato republicano em 2024. Pode até ser que Trump faça um retorno triunfal à Casa Branca.
Mas o que é possível não precisa ser provável. E as chances são muito boas que os americanos se entediem com as palhaçadas cada vez mais risíveis do mau perdedor que acabam de expulsar do cargo.
*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".
Folha de S. Paulo: 'Reeleição de Trump traria dúvidas até sobre eleições livres nos EUA em 2024', diz Yascha Mounk
Autor de 'O Povo Contra a Democracia' afirma que vitória de Biden seria batalha mais crucial que democracia terá conseguido vencer
Marcos Augusto Gonçalves – Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - Num pleito presidencial épico, que mobiliza como nunca as atenções dos Estados Unidos e do mundo, a escolha entre a permanência do republicano Donald Trump na Casa Branca ou a eleição do democrata Joe Biden representará uma decisão histórica sobre o futuro da democracia.
“Uma vitória de Biden seria uma enorme dádiva para a democracia americana”, diz o cientista político Yascha Mounk, professor associado da universidade Johns Hopkins e autor de “O Povo contra a Democracia” (Companhia das Letras, 2019).
Em entrevista à Folha, ele avalia que uma eventual reeleição de Trump, o mais valioso aliado de governantes hostis às instituições democráticas, em países como Índia, Polônia, Filipinas e Brasil, aprofundaria a crise existencial das democracias e lançaria incertezas até mesmo sobre as perspectivas de eleições livres e justas nos EUA em 2024.
Mounk considera que Biden, caso eleito, enfrentaria dificuldades, mas tenderia a manter seu perfil moderado no governo, em que pesem as pressões que sofrerá, a começar pelas da ala mais à esquerda do Partido Democrata.
O cientista político também opina sobre o papel de um Trump relegado à oposição e levanta hipóteses sobre o futuro do Partido Republicano. Analisa, ainda, as possíveis mudanças nas relações que uma administração democrata teria com Rússia e China.
Uma vitória de Trump provavelmente reforçaria a onda conservadora internacional. No Brasil, seria quase uma vitória pessoal do presidente Jair Bolsonaro. No plano internacional, seriam mais quatro anos de ataques ao multilateralismo. A ameaça às democracias seria renovada?
Nos últimos quatro anos Donald Trump enfraqueceu significativamente as instituições democráticas nos Estados Unidos. Além disso, tem sido o aliado mais valioso de populistas autoritários que procuram enfraquecer a democracia, em países que vão da Índia às Filipinas.
Se ele for reeleito, a crise existencial da democracia vai se intensificar. Nesse caso, deixaremos de ter a certeza de eleições livres e justas nos EUA em 2024 e será ainda mais provável que a democracia seja enfraquecida nos países onde ela está lutando para sobreviver neste momento.
Na hipótese de uma derrota de Trump, o populismo de direita tenderia, em tese, a se enfraquecer. Mas a polarização vai prosseguir de alguma forma. Você acredita que um Trump derrotado exerceria algum papel como opositor ou tenderia a sair de cena, como costuma ocorrer com ex-presidentes americanos?
Uma derrota de Donald Trump será uma enorme dádiva para a democracia americana. Embora muitos dos problemas do país provavelmente devam continuar refratários, teríamos uma administração progressista, decente, de visão humanitária, que respeita os direitos de seus adversários no poder. Também seria a expressão do desejo de muitos americanos de superar o clima de confrontação e ódio mútuo dos últimos quatro anos.
Joe Biden venceu as primárias e pode vencer a eleição geral porque desde o primeiro momento sua candidatura apostou na ideia de que esta é uma luta pela reconciliação e pela alma da América. É claro que Donald Trump provavelmente se recusará a aceitar a legitimidade da eleição e fará o que puder para instigar a divisão por meio do Twitter.
Eu imagino, porém, que se for derrotado por uma margem mais ou menos ampla ele conseguirá atrair menos atenção do que tem sido o caso até agora. A atração que ele exerce sempre foi a do vencedor, mas, se ele perder e for rejeitado pela maioria da população americana, isso enfraquecerá sua posição seriamente.
Que cenários você imagina para o Partido Republicano em caso de uma derrota de Trump? Grupos mais moderados tenderiam a assumir o controle ou a resposta seria mais conflito e polarização?
Nos Estados Unidos, um partido político só tem um líder claro, realmente, quando ocupa a Presidência ou está no meio de uma eleição presidencial. Assim, pelos próximos três anos, pelo menos, não estará claro qual seria a real situação pela qual o Partido Republicano estaria passando.
Haverá alguns republicanos tradicionais que tentarão levar o partido de volta para o terreno do conservadorismo, das políticas pró-empresas, dos impostos mais baixos e de algum grau de posições conservadoras em questões sociais. Em segundo lugar, haverá um campo populista que procurará sistematizar alguns dos instintos políticos reais de Trump.
Esse campo poderá, por exemplo, continuar a colocar pressão sobre as empresas de tecnologia, a tentar impelir o Partido Republicano a adotar políticas econômicas mais favoráveis à classe trabalhadora americana, a focar esforços na oposição à imigração. Em terceiro lugar, provavelmente haverá um campo de seguidores fiéis que continuará a derramar-se em elogios ao próprio Donald Trump ou que tentará instaurar um sucessor escolhido a dedo, que pode ser um dos membros da família do atual presidente.
É muito difícil prever qual desses três campos acabará vencendo em 2024. Há uma possibilidade de o Partido Republicano se moderar e retornar à sua forma tradicional, mas também é possível que seu líder seja Donald Trump Jr. ou alguém como o apresentador da rede Fox News Tucker Carlson. Portanto, serão quatro anos interessantes para observar os rumos do Partido Republicano.
Apesar das ameaças, ao menos em parte as democracias parecem resistir, como ocorre no Brasil. A ideia de que caminhamos para o fim das democracias ainda está viva?
No último ano, mais ou menos, observamos a resiliência de democracias, mas também observamos o poder de resistência e permanência de populistas em todo o mundo. Em uma eleição muito importante, na Polônia, o partido populista conseguiu reeleger seu presidente.
Na Índia, Narendra Modi conquistou uma grande vitória recentemente nas eleições nacionais e agora está agindo com vigor renovado para enfraquecer a liberdade de expressão e os direitos da oposição. Nas Filipinas, a democracia, na prática, já morreu.
Se Biden ganhar nesta terça-feira, essa será sem dúvida a batalha mais importante que a democracia terá conseguido vencer, e isso deverá nos deixar otimistas quanto à nossa capacidade de travar batalhas futuras. Mas acho que ainda é cedo para previsões seguras sobre o desenlace dessa guerra futura.
Parece claro que o liberalismo como ideologia e proposta econômica vem demonstrando dificuldades em dar respostas para os desafios contemporâneos e para promover o desenvolvimento de nações emergentes. Há uma perspectiva em cena de governos com tendência a promover mais presença do Estado na vida econômica e social? Um vitória democrata nos EUA levaria a um governo mais preocupado com o Estado de bem-estar social?
Precisamos distinguir os dois significados muito diferentes do termo “liberalismo”. O liberalismo, do modo como eu tendo a falar dele, é um elemento fundamental de nosso sistema político democrático.
É a insistência na ideia de que o presidente ou o primeiro-ministro não podem tomar todas as decisões ou qualquer decisão, de que haverá limites ao seu poder. A ideia de que é necessário conservar os direitos da oposição. De que precisamos que especialistas possam tomar decisões ou influenciar decisões sobre questões como saúde pública no meio de uma pandemia global. De que precisamos respeitar os direitos mesmo de indivíduos impopulares ou de minorias.
A importância do liberalismo nesse sentido foi comprovada ao longo dos últimos anos, quando vimos o impacto terrível causado por pessoas como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, que ignoram esses direitos.
Você parece estar empregando “liberalismo” em um sentido um pouco diferente, que talvez seja mais comum na América Latina, como um conjunto de ideias sobre o papel do governo na economia. E com certeza houve uma espécie de consenso nos anos 1990 e início dos anos 2000 de que o governo deveria se retirar da vida econômica e que o Estado deveria exercer o menor papel possível.
Esse consenso, na medida em que existiu, foi claramente equivocado de algumas maneiras importantes. Estamos vendo mais uma vez que precisamos de equilíbrio entre uma expansão da economia que ofereça, às pessoas de talento, oportunidades de criar novas empresas e produtos para ajudar no crescimento, e um Estado de bem-estar social muito robusto que garanta que os ganhos auferidos com esse crescimento sejam distribuídos justamente e que cada cidadão, independentemente de seu grau de êxito econômico, consiga levar uma vida digna, tenha acesso a atendimento médico decente, a uma moradia, à alimentação e à educação.
Existe certamente a esperança de que uma administração Joe Biden nos Estados Unidos possa ajudar a completar o Estado americano de bem-estar social. E isso talvez ajude a concretizar a mudança no tom prevalente sobre a política econômica.
Como você vê a crescente influência chinesa nesses cenários de redefinição das democracias? Já estamos no limiar de um século chinês? Ele será mais coletivista, tecnológico e autoritário?
A China está claramente ganhando influência e autoconfiança crescentes. O país agora está mais interessado do que esteve no passado em influenciar as relações internacionais e a política interna. Isso inclui, em alguns casos, ataques reais contra a liberdade de expressão em democracias ocidentais. Essa influência é perigosa para a persistência dos valores liberais dentro dos países e entre eles. Precisamos fazer o que pudermos para resistir à influência chinesa indevida em nossos próprios países.
Ao mesmo tempo, acho que também existe uma oportunidade potencial aqui, porque o desafio a esses valores, a ameaça que vem do exterior à persistência da democracia, além do âmbito interno, pode facilitar a cooperação entre democracias do mundo em defesa do nosso modo de vida. Assim, o modo como nos contrapomos à ascensão do poder da China vai determinar se o mundo se tornará mais coletivista e autoritário ou se poderemos aproveitar isso como inspiração para lutar pelos valores democráticos.
Caso Biden vença, as relações com a Rússia e a China mudariam?
Donald Trump gostou de Vladimir Putin, mas também de Xi Jinping. Teve relações calorosas com o general Sisi, mas também com Kim Jong-un. Mesmo em democracias ele tem preferido candidatos e líderes populistas, incluindo Jair Bolsonaro, a suas contrapartes mais moderadas.
Uma administração Biden certamente ficará mais do lado da democracia que da autocracia e mais do lado dos moderados que dos extremistas. Mas há uma questão à parte sobre o quanto os EUA realmente poderão fazer para se contrapor à influência russa e chinesa no mundo e até que ponto uma administração Biden se disporia a lançar mão de todos os meios para isso. É uma questão difícil, que teremos que observar nos próximos anos.
Você acredita que Biden conseguirá manter uma posição mais moderada se chegar ao poder? Ou ele seria pressionado a ceder terreno para a esquerda?
Joe Biden ganhou a indicação do Partido Democrata porque era o único candidato que não achou necessário ir muito longe à esquerda para conquistar os corações e mentes dos democratas. Durante a campanha eleitoral ele resistiu inúmeras vezes à ala radical de seu partido, por exemplo, mostrando-se muito mais disposto que outros a condenar a violência em alguns dos protestos que ocorreram nos EUA.
Assim, é muito provável que ele procure governar como moderado. Se ele obtiver uma vitória convincente, isso será mais fácil, sob alguns aspectos, na medida em que um número maior de deputados e senadores virá de distritos e estados indecisos que também precisam permanecer no centro da política. Ao mesmo tempo, é provável que a insatisfação da esquerda com Biden domine boa parte da esfera pública e seja expressa com destaque pela mídia.
Ele vai precisar preencher milhares de cargos e é provável que muitos dos indicados se situem à esquerda dele. Desse modo, ele poderia acabar empurrado para a esquerda. Se isso acontecer, temo que possa criar condições para o ressurgimento do Partido Republicano nas eleições parlamentares de 2022 e, potencialmente, na presidencial de 2024.
*Yascha Mounk, 38 Cientista político, com doutorado em Harvard, é professor associado da universidade americana Johns Hopkins, em Baltimore. É autor de “O Povo Contra a Democracia” (Companhia das Letras, 2019), livro que se tornou referência internacional nos debates sobre a ascensão do populismo autocrático em diversos países. Assina coluna mensal na Folha.
Yascha Mounk: Modelos mais sofisticados ainda dão a Trump uma chance em cinco de vencer
Tendência geral é de que populistas conseguem se manter no poder, e vitória de Biden seria exceção
Muitos americanos estão olhando para o próprio país e sentindo vergonha. O que revela sobre os EUA alguém como Donald Trump não apenas ter vencido uma eleição presidencial como conservado o apoio de tantos, não obstante suas falhas evidentes?
Quando mais uma declaração cruel ou racista do presidente aparece no meu feed, sinto essa vergonha. Mas como cientista político que estuda a ascensão de populistas autoritários, sei que a atração exercida por Trump está mais perto de constituir a regra que a exceção.
Nos últimos anos, populistas conquistaram o cargo mais alto em democracias de várias partes do mundo, de Jair Bolsonaro no Brasil a Narendra Modi na Índia. A atração exercida pelos dois mostrou ser surpreendentemente resiliente.
Modi conquistou um segundo mandato por maioria inequívoca. Bolsonaro é visto nas pesquisas com grande chance de fazer o mesmo.
Em novembro, porém, os EUA podem se mostrar excepcionais: se as pesquisas de opinião se comprovarem acertadas, será a primeira grande democracia na memória recente a afastar um governante populista ao término de seu primeiro mandato.
Quando Trump foi eleito, muitos de seus adversários se deixaram levar pela fantasia de que ele deixaria o cargo muito antes do término de seu mandato. Talvez se cansasse de suas responsabilidades políticas.
Talvez fosse impichado. Seja qual fosse a forma de sua queda, uma centena de artigos nos garantiu que essa maluquice não poderia se prolongar por quatro anos.
Essa espécie de pensamento veleidoso é típica dos adversários dos populistas autoritários. Mas longe de terem probabilidade especial de perder o poder repentinamente ou antes do previsto, os presidentes e primeiros-ministros populistas se conservam no cargo em média pelo dobro do tempo que os não populistas: seis anos e meio, comparados a três no caso destes últimos.
Como Jordan Kyle e eu demonstramos, essa discrepância chama a atenção especialmente quando comparamos governos que se mantêm no poder há mais de dez anos. Um chefe de governo populista tem cinco vezes mais probabilidade de permanecer no cargo após uma década do que um não populista.
E encontramos poucos exemplos de populistas que perderam o poder após apenas um mandato. Os eleitores tendem a reconhecer seu erro apenas depois que os líderes populistas causaram danos graves às instituições democráticas.
Embora as sondagens coloquem Biden na dianteira, os modelos mais sofisticados ainda dão a Trump uma chance em cinco de vencer a eleição. Considerando o que está em jogo, essa chance está longe de ser tranquilizadora.
Para agravar as coisas, o contexto internacional também mostra que os poucos populistas que não são reeleitos para um segundo mandato tendem a conservar uma presença grande e prejudicial em seus países.
Silvio Berlusconi, por exemplo, tornou-se o premiê da Itália pela primeira vez em 1994. Perdeu a maioria governante em menos de um ano, mas não tardou a se recuperar, passando a dominar a política italiana pelas duas décadas seguintes.
Mesmo assim, a lição principal que tiro do contexto internacional é inspiradora. Depois de quatro anos durante os quais os EUA mostraram o que têm de pior, é muito possível que em breve os americanos contrariem a tendência global, afastando um governante populista na primeira oportunidade possível.
E se Trump de fato se tornar um presidente de um mandato só, uma nova administração pode ajudar a liderar a luta internacional contra as forças ascendentes do iliberalismo.
*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".
Tradução de Clara Allain
Yascha Mounk: Força de Biden é ter afiado instintos políticos por muitas décadas
Ao evitar cair na armadilha de Trump, democrata vem sendo mais inteligente do que seus colegas
Ao longo das primárias Joe Biden foi retratado como um anacronismo, um homem cujo melhor momento ficara uma década ou três no passado. Ao mesmo tempo em que os veículos da grande imprensa publicavam perfis bajuladores de seus principais rivais, descartavam as chances de sucesso dele.
Mas Biden não apenas derrotou uma dúzia de concorrentes para se tornar o candidato indicado do Partido Democrata como também está persistentemente à frente de Donald Trump nas pesquisas de intenção de voto, lidando habilmente com a política extraordinariamente turbulenta de 2020.
A explicação mais simples é que as pessoas gostam de Joe Biden, e gostam dele por uma razão: diferentemente de Trump e de alguns setores do Partido Democrata, Biden de fato expressa o ponto de vista da maioria dos americanos.
Quando protestos de massa desencadeados pelo assassinato de George Floyd se alastraram pelos Estados Unidos, o público americano reagiu de modo muito menos dividido do que talvez sugira um olhar rápido para a paisagem da mídia polarizada.
De acordo com as pesquisas, a maioria dos americanos encara a brutalidade policial como um problema grave e pensa que precisamos fazer mais para combater o racismo. Segundo as mesmas pesquisas, a maioria dos americanos também considera que protestos violentos são ilegítimos e que “desfinanciar a polícia” é má ideia.
Mas esse consenso passou despercebido por muitas elites políticas e da mídia. O pior ofensor é, como sempre, Donald Trump, que parece ser incapaz de exprimir empatia por aqueles que sofrem com a injustiça e ainda parece pensar que pode fortalecer sua posição inflamando as tensões raciais no país.
Algumas pessoas da esquerda, porém, também se desviaram em direção aos extremos. Políticos progressistas abraçaram mensagens profundamente impopulares como “desfinanciar a polícia”. Alguns jornalistas conhecidos fizeram de conta que a turbulência e as depredações não estão ocorrendo em grande escala e que de qualquer jeito, se isso acontecesse, seria perfeitamente justificável. O senador democrata Chris Murphy, de Connecticut, chegou a ir ao Twitter para se desculpar por ter criticado a violência política.
Essas omissões vêm tendo consequências sérias em campo. Em todos menos os casos mais flagrantes, as autoridades de Portland têm se negado a processar manifestantes violentos. Um homem que se beneficiou dessa política é Michael Reinoehl, extremista branco que escreveu nas redes sociais que “toda Revolução precisa de pessoas dispostas e preparadas para lutar… Eu sou 100% ANTIFA até o fim!”
Reinoehl foi detido em um protesto local em julho por portar uma arma carregada e resistir à prisão. Mas foi solto em pouco tempo. Algumas semanas mais tarde, as acusações contra ele foram arquivadas. Então ele disparou contra um partidário de Trump, matando-o, em um protesto no centro de Portland.
Felizmente, a maioria dos líderes comunitários e políticos negros têm ignorado as expressões de angústia online sobre os perigos de criticar atitudes que desrespeitam as leis. Eles abraçaram plenamente o movimento de massa por justiça racial –e condenaram inequivocamente os extremistas e oportunistas que saqueiam lojas, incendeiam bairros ou se entregam a fantasias juvenis sobre revolução política.
Mais importante ainda, o candidato presidencial do Partido Democrata também tem condenado a violência, coisa que fez desde o início, com frequência e de modo inequívoco. Como Biden disse em um discurso recente: “Promover baderna nas ruas não é protestar. Saquear não é protestar. Atear incêndios não é protestar, é ilegalidade pura e simples. E quem pratica esses atos deve ser processado”.
Assim, se há poucos indícios de que os americanos estejam se voltando contra Biden em resposta à turbulência, é em grande parte porque Biden vem sendo muito mais inteligente do que muitos de seus colegas, ao evitar cair na armadilha de Trump. Diferentemente dos jovens e dos que vivem online, ele não aderiu à lição absurda de que criticar tumultos e depredações significa trair o movimento por justiça racial.
Longe de ser fonte de fraqueza, portanto, o fato de Biden ter afiado seus instintos políticos ao longo de muitas décadas é uma fonte de força eleitoral. Se ele conseguir tornar-se o 46º presidente dos Estados Unidos, não será apesar de sua falha em compreender o que muitos jornalistas e políticos acreditam ser o espírito do momento –será porque possui o bom-senso político para rejeitá-lo. (Tradução de Clara Allain)
*Yascha Mounk cientista social é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".
Yascha Mounk: Quanto mais tempo líderes populistas permanecem no poder, mais radicais se tornam
Na Índia, Modi causou mais danos nos primeiros meses de seu 2º mandato do que nos 5 anos anteriores
Quando passei um mês numa viagem de pesquisas na Índia, em dezembro de 2014, meio ano após a chegada ao poder de Narendra Modi, os escritores, acadêmicos e intelectuais que encontrei estavam mergulhados numa grande discussão sobre o futuro de seu país.
Todos rejeitavam Modi, nacionalista hindu fervoroso, devido ao seu desdém pela Constituição secular indiana. Mas estavam divididos quanto ao impacto que seu governo provavelmente teria sobre as liberdades fundamentais que eles desfrutavam.
Alguns temiam que Modi pudesse avançar rapidamente para sufocar qualquer dissensão. Outros faziam pouco-caso desses receios, que consideravam exagerados.
Modi causou danos consideráveis em seus cinco primeiros anos no poder, enfraquecendo tanto as liberdades desfrutadas por seus críticos quanto as minorias religiosas do país. Mas o pior ainda estava por vir.
Quando Modi foi eleito com maioria ainda mais expressiva na primavera do ano passado, seu governo começou a tomar iniciativas radicais para desmontar o secularismo da Constituição indiana; pode-se argumentar que ele causou mais danos nos primeiros meses de seu segundo mandato do que havia feito nos cinco anos anteriores. Algumas das preocupações levantadas sobre Modi que pareceram exageradas ao término de seu primeiro mandato agora começam a revelar-se prescientes.
Um grande movimento de protesto tomou forma nas últimas semanas para se opor a essas medidas radicais. Em cidades e universidades de todo o país, cidadãos de todas as religiões vêm protestando contra o governo de Modi. Sua reação tem sido brutal: em alguns estados o governo evocou estatutos da era colonial para proibir reuniões com mais de cinco pessoas. Outros estados fecharam o acesso à internet. Vídeos brutais mostram policiais agredindo estudantes suspeitos de ter protestado contra o governo.
Muitos observadores da Índia se surpreendem pelo fato de Modi ter ficado tão mais extremo em seu segundo mandato. Mas uma comparação traçada com governos populistas em todo o mundo sugere que a Índia está seguindo um roteiro previsível do que fazem candidatos a líderes autoritários quando são reeleitos.
Como já vimos em países que incluem a Hungria, Turquia e Venezuela, inicialmente os líderes populistas são limitados em sua capacidade de concentrar o poder nas próprias mãos. Muitas instituições essenciais, incluindo os tribunais e as comissões eleitorais, ainda estão dominados por profissionais de mente independente e que não devem sua nomeação ao novo regime. Veículos de imprensa ainda conseguem e se dispõem a noticiar escândalos, forçando o governo a agir com alguma cautela.
A partir do momento que esses governos são reeleitos, essas limitações à sua ação começam a desaparecer. Com a saída dos juízes e servidores públicos de pensamento independente, os líderes populistas se sentem fortalecidos para tentar concretizar seus sonhos despóticos.
Trata-se de um aviso para os Estados Unidos. Em seu primeiro mandato como presidente, Donald Trump causou prejuízos graves ao estado de direito. Mesmo assim, algumas das previsões mais extremas traçadas sobre seu governo mostraram-se infundadas até agora. Por exemplo, o aviso lançado por Madeleine Albright sobre fascismo iminente mostrou ser excessivamente dramático.
Talvez seja por isso que o medo e o repúdio que impeliram protestos tão grandes nos primeiros meses de 2017 pareçam ter se dissipado. Muitos americanos hoje supõem que a reeleição de Trump trará nada pior do que mais quatro anos do que estamos vendo até agora —terrível, sem dúvida, mas hoje um terrível que já conseguimos imaginar.
Mas o que vem acontecendo na Índia e Polônia deveria chocar os americanos, arrancando-os da complacência. O primeiro mandato de Trump é na melhor das hipóteses um indicativo imperfeito dos horrores que podem estar à espreita dos americanos se ele conseguir conquistar um segundo mandato.
Isto também é um aviso ao Brasil. Com Jair Bolsonaro agora no poder há pouco mais de um ano, é tentador supor que os acontecimentos dos últimos 12 meses constituem um indício confiável do que ainda vem pela frente. Mas a trajetória de outros líderes populistas sugere que supor isso seria um erro grave: quanto mais tempo líderes populistas permanecem no poder, mais radicais e perigosos eles se tornam.
*Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".
Tradução de Clara Allain