Xingu

Desmatamento no Xingu põe em risco ‘escudo verde’ contra a desertificação da Amazônia

Monitoramento da Rede Xingu+ mostra que, entre 2018 e 2020, 513,5 mil hectares foram desmatados na bacia do Xingu, o equivalente a seis vezes a cidade de Nova York (EUA). Um dos epicentros foi faixa de floresta que mantém a umidade do bioma

Instituto Socioambiental (ISA)
Foto: Divulgação/Twetter

Os resultados de três anos de monitoramento do Sirad X, o sistema de detecção de desmatamento da Rede Xingu +, revelam uma intensificação dos conflitos e disputas por terras e recursos naturais nas Áreas Protegidas do Xingu. Desmatamento, mineração ilegal, incêndios, grilagem e impactos de grandes obras de infraestrutura ameaçam o Xingu e seus povos. [Acesse o especial "Xingu sob Bolsonaro"]

Nos últimos três anos, o desmatamento dentro de Áreas Protegidas variou de 30%, em 2018, para 34%, em 2020. Esse processo revela o deslocamento do desmatamento para dentro dos territórios indígenas e de populações tradicionais, tendência que ficou evidente em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, quando houve uma alta de 38% do desmatamento dentro de Terras Indígenas e de 50% dentro de Unidades de Conservação na bacia.

Entre 2018 e 2020, período que coincide com a eleição e primeira metade do mandato do presidente Jair Bolsonaro, 513,5 mil hectares foram desmatados na bacia do Xingu. A área equivale a 6 vezes a de Nova York (EUA). Atualmente, 149 árvores são derrubadas a cada minuto.

Ao invés de executar medidas de proteção do Xingu, o governo promove um cenário de total impunidade por meio de discursos favoráveis à redução inconstitucional de Terras Indígenas e a legalização de atividades destrutivas, como o garimpo, além de enfraquecer ações de fiscalização.

Quebra da conectividade do Corredor Xingu coloca Amazônia em risco
Grupos de grileiros avançam sobre Áreas Protegidas na região do Iriri, entre os municípios de Novo Progresso e São Félix do Xingu, no estado do Pará. O desmatamento ameaça cortar a faixa de floresta ao meio, acabando com a conectividade desse grande maciço florestal.

E longe de ser um fato isolado, isso pode empobrecer a floresta, afetando milhares de espécies que dependem de sua conexão, fragilizando ainda mais sua capacidade de resistir às mudanças ao seu redor.

Estima-se que 17% da cobertura original da Amazônia já tenha sido desmatada, aproximando a floresta do “ponto de não retorno”. Isto é, o momento em que a degradação alcançará um limite após o qual a floresta não conseguirá mais existir como a conhecemos hoje, dando espaço para uma vegetação mais seca e vulnerável, sem capacidade para continuar exercendo sua função de provedora de chuva, essencial para toda a América do Sul. A destruição do Corredor Xingu pode acelerar esse processo, sua proteção, portanto, é fundamental para a garantia da floresta, seus povos e do clima no planeta.

Explosão do desmatamento
Entre 2018 e 2020, ao menos 513,5 mil hectares de desmatamento foram detectados na bacia hidrográfica do Xingu.

As taxas refletem a expectativa, naquele ano, da flexibilização das leis ambientais e a precarização das políticas de combate ao desmatamento, assim como a diminuição efetiva da fiscalização.

Nas Terras Indígenas, 66,5 mil ha de desmatamento foram detectados nos três anos de monitoramento. A partir de outubro de 2018, o desmatamento começou a se intensificar em alguns territórios, como nas TIs Cachoeira Seca, Ituna Itatá, Apyterewa e Kayapó. Em 2019, essa tendência se consolidou em outras áreas e houve uma explosão no desmatamento, resultado de invasões, roubo de madeira, mineração ilegal e grilagem de terras.

Em 2020, o desmatamento dentro das Unidades de Conservação e Terras Indígenas diminuiu 6% e 49%, respectivamente, enquanto em seu entorno aumentou 23%. A redução do desmatamento dentro das Áreas Protegidas ocorreu após ações concentradas de fiscalizações do Ibama em Terras Indígenas críticas da bacia, como a TI Cachoeira Seca e TI Ituna Itatá, cujos índices mostraram drástica redução no início de 2020. O cancelamento não justificado das ações de fiscalização no ano passado, no entanto, ameaça reverter essa tendência e o desmatamento pode voltar a crescer.

Dos 3 hectares desmatados em maio de 2020 na Trincheira Bacajá, por exemplo, o desmatamento pulou para 411 hectares em dezembro, um aumento de 12.980%. Nos meses seguintes, entre setembro e dezembro, mais 1.847 ha foram desmatados nessa TI. Já na Apyterewa, o desmatamento aumentou em 393% no mês seguinte à suspensão das operações, e continuou crescendo: entre julho e dezembro foram desmatados 5,8 mil hectares, 1.287% ou quase 14 vezes mais do que o total desmatado entre janeiro e junho.

Corredor de Áreas Protegidas do Xingu: diversidade, água e escudo contra a destruição
A bacia do Rio Xingu compreende uma área de aproximadamente 53 milhões de hectares nos estados do Pará e do Mato Grosso e abrange uma grande diversidade de povos e ecossistemas, de florestas densas e várzeas do bioma Amazônia até áreas de vegetação típicas do Cerrado. A bacia comporta um dos maiores mosaicos contínuos de Terras Indígenas e Unidades de Conservação no planeta: o Corredor de Áreas Protegidas do Xingu.

Com 23 Terras Indígenas e nove Unidades de Conservação, o Corredor é considerado uma das regiões com maior sociobiodiversidade no mundo, abrigando 26 povos indígenas e centenas de comunidades ribeirinhas. Há séculos esses povos tradicionais manejam e protegem suas florestas, que comportam um imenso conjunto de espécies de plantas e animais, algumas ainda desconhecidas pela ciência. Com uma uma área de mais de 26,5 milhões de hectares, o Corredor tem um papel crucial na proteção da Amazônia e do clima.

A região presta serviços ambientais inestimáveis ao planeta, da proteção de rios e nascentes à regulação do clima a nível local, regional e global. Suas vastas florestas representam uma das maiores e mais estáveis reservas de carbono na Amazônia oriental, estocam aproximadamente 16 bilhões de toneladas de CO2.

Estima-se que suas árvores lancem para a atmosfera, por meio da evapotranspiração e da produção de compostos orgânicos voláteis que atuam como núcleos de condensação de chuva, de 880 milhões a 1 bilhão de toneladas de água por dia, um volume similar ao que o rio Xingu despeja no Amazonas no mesmo período.

A água é transportada pelos chamados “rios voadores” para as regiões centro-oeste, sudeste e sul do Brasil, fornecendo a chuva para cidades e campos, essencial para a manutenção da atividade agropecuária.


Fonte:
Instituto Socioambiental (ISA)

https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/desmatamento-no-xingu-avanca-com-governo-bolsonaro-e-poe-em-risco-escudo-verde-contra-a-desertificacao-da-amazonia


Eliane Brum: Governo Bolsonaro decreta a morte de um pedaço da Amazônia

Ao autorizar Belo Monte a secar a Volta Grande do Xingu, o Ibama mudou de lado e assinou a permissão para um ecocídio na maior floresta tropical do mundo

A Amazônia é hoje a principal razão para o Brasil manter alguma relevância internacional. É da conservação da maior floresta tropical do planeta, o maior sumidouro terrestre de carbono do mundo, que dependem os principais acordos internacionais, como o maior de todos eles, o do Mercosul com a União Europeia. É também da sobrevivência da floresta que cada vez mais dependem a autorização e a aceitação dos produtos brasileiros nos mercados europeus e nos Estados Unidos de Joe Biden. Estratégica para controlar o superaquecimento global, a Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno, como têm repetidamente alertado cientistas com reconhecimento global, como Carlos Nobre. No momento em que a floresta se converter numa savana, o Brasil será apenas um país com desigualdade abissal, racismo criminoso, miséria em expansão e um presidente que virou piada no mundo. Terá também cometido um suicídio econômico, ao matar a floresta que regula o clima que permite a agricultura, afetando toda a cadeia de produção de alimentos e alguns dos principais produtos de exportação.

Nesse contexto, e num momento de progressiva recessão, o que o Governo Bolsonaro fez, pressionado por setores da política e do mercado interessados em manter o controle do sistema elétrico e faturar com ele? Autorizou a Norte Energia SA, empresa concessionária da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a liberar um volume de água para a Volta Grande do Xingu que comprovadamente, tanto pelos estudos científicos quanto pela experiência prática, é insuficiente para manter a vida. O que está acontecendo agora, nesse momento, é o que o direito internacional chama de “ecocídio” e que consiste no extermínio de um ecossistema inteiro. O que mata a natureza, como a emergência climática e também as pandemias já provaram, mata também a possibilidade de sobrevivência da espécie humana.

A autorização para o ecocídio aconteceu em 8 de fevereiro e foi celebrada nas páginas de economia de alguns dos principais jornais do Brasil. Nenhum outro acontecimento é mais grave e nenhum é mais escandaloso, com possível exceção da escalada da covid-19 sem confinamento nem plano de vacinação responsável. Uma semana antes de autorizar Belo Monte a reduzir drasticamente a água para a Volta Grande do Xingu, o mesmo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) considerou a vazão proposta pela empresa para a Volta Grande do Xingu inaceitável por não haver estudos confiáveis capazes de comprovar a segurança socioambiental de uma das regiões mais biodiversas da Amazônia.

Em linguagem dura, a área técnica do Ibama determinou que a Norte Energia S.A. refizesse os estudos e voltasse a apresentá-los: “Faltou dados de base para testes e comprovação dos resultados, faltou esclarecimento como fontes e origem de dados, faltou clareza na redação do texto, citações sem resultado e sem discussão. (...) A presente análise também discorda da suposta validação do modelo. (...) Essa análise NÃO considerou satisfatória as respostas dadas aos questionamentos 1,2 e 4. (...) Por fim, verificou-se conclusões baseada em especulações sobre garantia de manutenção de ambientes aquáticos sob vazões do hidrograma de testes sem dados dos estudos bióticos”.

Percebam que não são minhas as palavras, mas do próprio Ibama. Desde 2020, a Norte Energia luta na Justiça contra as decisões do órgão ambiental pela quantidade de água na Volta Grande. O parecer técnico citado tem a data de 1º de fevereiro de 2021 (leia na íntegra). Apenas uma semana mais tarde, em 8 de fevereiro, o diretor-presidente do Ibama, o advogado Eduardo Fortunato Bim, ignorou a avaliação técnica e autorizou a Norte Energia a liberar quase SETE VEZES MENOS a quantidade média de água que o Ibama havia determinado anteriormente como o mínimo essencial ―e quase NOVE VEZES MENOS a quantidade média de água da vazão natural do rio em fevereiro, época da cheia. A Norte Energia agora está oficialmente autorizada a liberar insuficientes 1.600 metros cúbicos de água por segundo, em vez dos 10.900 metros cúbicos por segundo determinados anteriormente pela área técnica do Ibama e dos 14.000 metros cúbicos por segundo da vazão natural média do Xingu nessa época do ano.

Para “compensar” a destruição da Volta Grande, a presidência do Ibama fez um “Termo de Compromisso Ambiental” com a Norte Energia, pelo qual a empresa “investe” 157,5 milhões de reais em ações de mitigação ao longo de três anos (leia na íntegra). Por exemplo: já que vão exterminar os peixes, que já não conseguem nem se alimentar nem se reproduzir, peixes que neste exato momento deveriam estar fazendo a piracema, mas em vez disso estão morrendo por falta de água, a empresa faz um projeto de reprodução de peixes em laboratório. É sério, não é piada. Antes fosse. Troca-se um pedaço da floresta por uma série de projetos artificiais que já se mostraram pouco viáveis nas compensações anteriores da Norte Energia que, na maioria das vezes, só enriquecem as empresas contratadas para executá-las.

Vale lembrar que a Norte Energia S.A. comprovadamente ainda não concluiu a totalidade das ações de mitigação necessárias para ter a licença de operação da usina ―e já opera desde 2016. A licença para operação foi dada pelo Ibama no final de 2015 sem que a empresa tivesse cumprido as condicionantes que condicionavam a operação. O que condicionava deixou de condicionar, num dos grandes escândalos de uma trajetória repleta deles.

As novas medidas supostamente compensatórias vão para essa conta de fiado que nenhum mercadinho de esquina aceitaria, mas o Governo brasileiro, sim. Inclusive porque quase metade (49,98%) das ações da Norte Energia é hoje composta pelo Grupo Eletrobras, um grupo composto por estatais. O segundo maior grupo de acionistas são fundos de pensão (20%), Petros e Funcef, o que significa que são fundos de previdência complementar dos funcionários da Petrobras e da Caixa Econômica Federal. Seria interessante saber o que os servidores pensam de sua previdência estar conectada com um desastre ecológico na Amazônia. A compensação, além de impossível na prática, é apenas uma promessa, já que o passivo da empresa é enorme, como provam mais de 20 ações do Ministério Público Federal (confira aqui).

Na prática, o presidente do Ibama autorizou que a empresa altere completamente o ciclo biológico da Volta Grande do Xingu, atingindo pelo menos dois povos indígenas, os Yudjá (também conhecidos como Juruna) e os Arara, o que é inconstitucional, assim como comunidades de ribeirinhos, de pescadores e de agricultores familiares. Autorizou também a degradação do Xingu, um dos maiores rios da Amazônia, além de toda a fauna e a flora da Volta Grande, uma das regiões mais extraordinárias da floresta, com algumas espécies endêmicas, como o acari zebra, o que significa que só existem naquele bioma e desaparecerão com ele. O presidente do principal órgão ambiental do Governo brasileiro autorizou uma empresa a controlar a água de um dos grandes tributários do Amazonas e destruir um pedaço da maior floresta tropical do mundo e engana a população afirmando que seria possível compensar a tragédia ecológica provocada. A floresta é um organismo integrado, complexo e interdependente, assim como o próprio planeta. O que acontece na Volta Grande do Xingu repercute em todo o sistema e vai acelerar a escalada da Amazônia rumo ao ponto de não retorno, no qual a floresta se converte numa savana.

O que aconteceu para que a área técnica do Ibama diga não e a área política diga sim? Pressão do que se chama setor elétrico e de seus agentes. E pressão com o apoio das editorias de economia de alguns dos grandes jornais do país ―sendo a principal exceção o repórter André Borges, de O Estado de S. Paulo, que tem feito uma cobertura irretocável. Desde janeiro há um cerco intenso sobre o Ibama e também sobre a opinião pública. As notas vazadas para a imprensa e, na maioria das vezes, reproduzidas sem crítica, anunciavam a ameaça de colapso do sistema elétrico do país caso o Ibama recusasse o volume de água demandado pela Norte Energia que, vale repetir, é comprovadamente incompatível com a manutenção do ecossistema da Volta Grande do Xingu.

Em 15 de dezembro, o Ministério de Minas e Energia já havia afirmado em ofício: “Conclui-se que as alterações no Hidrograma definido para a UHE Belo Monte, avaliadas pela ótica da geração de energia elétrica, se traduzem em relevantes impactos negativos ao setor elétrico brasileiro, com efeitos diversos, sistêmicos e coletivos, de planejamento, comerciais e operacionais, afetando, inclusive, a segurança energética”.

Em 27 de janeiro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) enviou um ofício ao Ibama, assinado pelo diretor-geral, André Pepitonne da Nóbrega, afirmando: “Sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto, o impacto estimado da medida aplicada nos dois primeiros meses de 2021, janeiro e fevereiro, seria próximo a 1,3 bilhão de reais para o consumidor final de energia elétrica”. O ofício (leia aqui) foi reproduzido como matéria por parte da imprensa sem mencionar o impacto socioambiental de uma vazão de água enormemente reduzida para a Volta Grande nem explicar como o diretor-geral da Aneel chegou a esse cálculo, para além da mera afirmação de que isso se deveria ao custo do “aumento da produção em usinas termelétricas”, mais caras e poluentes.

Em 28 de janeiro, o Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, enviou uma nota técnica ao Ibama, afirmando: “Em resumo, sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental que foge das atribuições desta Secretaria, e assumindo as consequências energéticas apresentadas pelo ministério setorial responsável (Ministério de Minas e Energia), a manutenção pelo IBAMA do referido hidrograma pode atrapalhar a necessária retomada do crescimento econômico do país após crise sanitária sem precedente, importando riscos à ordem e à economia pública”. (O grifo é por minha conta, leia aqui)

Percebam que tanto o Ministério da Economia como a Aneel usam a malandragem de uma ressalva: “sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto”, caso da Aneel, ou “sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental”, caso do Ministério da Economia. Como é possível fazer uma análise, no ano de 2021, sem abarcar a questão ambiental, isso em qualquer região do globo, e ainda com mais ênfase, na Amazônia? Não é preciso ter curso rápido de economia para compreender que isso é ou má fé ou incompetência ou ambas. Meio ambiente não é um tema paralelo, mas a linha que atravessa todos os outros temas. Tratar o meio ambiente como tema tangencial é de uma ignorância imperdoável e inaceitável neste momento histórico. Meio ambiente é a nossa casa, essa que a juventude climática denuncia que está em chamas ―e está. E, graças ao Brasil governado por Bolsonaro, também literalmente.

Vale lembrar que o fundo soberano da Noruega, o maior do mundo, excluiu a Eletrobras em 2020 devido às violações humanas e ambientais ocorridas na construção e operação de Belo Monte. “Risco inaceitável de que ela [Eletrobras] contribua para violações graves ou sistemáticas dos direitos humanos” foram as palavras usadas. Hoje, são os setores econômicos internacionais que mais pressionam pela conservação da Amazônia, não porque seus dirigentes repentinamente tenham se transformado em ecologistas, mas porque não são burros. E porque têm mais de dois neurônios são capazes de compreender que, sem a floresta não há futuro para a espécie e, portanto, também não haverá nem consumidores nem lucro. Se algum funcionário, mesmo de baixo escalão, fizesse qualquer análise de impacto sem “adentrar o tema ambiental” em qualquer organismo internacional ou em qualquer grande empresa com competividade hoje estaria demitido. O mesmo vale para jornalistas de economia. Aparentemente, os dirigentes brasileiros se formaram no século 20 e nunca mais leram nada. Ou, talvez, ficaram retidos ainda nos primeiros tempos da revolução industrial.

É também por violações ambientais, especialmente na Amazônia, que o acordo da União Europeia com o Mercosul naufraga nos parlamentos de países europeus. Nesta sexta-feira, por exemplo, o Fridays For Future, movimento liderado pela sueca Greta Thunberg, fará um tuitaço global pedindo que os parlamentos dos países europeus não ratifiquem o acordo da União Europeia com o Mercosul por causa da destruição da Amazônia. Duas de suas líderes vieram ao Brasil de barco à vela no final de 2019 para conhecer a floresta e conversar com lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas no evento Amazônia Centro do Mundo, que aconteceu na Terra do Meio e em Altamira, no Pará, com a presença de Raoni e Davi Kopenawa, entre outros intelectuais da floresta.

Não há nada mais imbricado com o tema ambiental hoje, num mundo em colapso climático, que a economia. Mas os dirigentes da área no Brasil acham perfeitamente normal fazer a análise de um fato que resultará em enorme impacto ambiental sem “adentrar na questão ambiental”. A pasta de Paulo Guedes também achou apropriado usar expressões típicas de governos autoritários, sempre sacadas do coldre quando é necessário apavorar a população: “riscos à ordem e à economia pública”.

Nenhuma análise pode ser levada a sério sem o custo socioambiental. O Brasil tem sido fortemente pressionado e vem perdendo investimentos e mercado para seus produtos por conta do aumento da destruição da Amazônia, mas abre 2021 decretando o fim de um pedaço da floresta. Ao contrário dos impactos da alegada redução da produção de energia por Belo Monte, os impactos socioambientais sobre a Volta Grande do Xingu são bem acompanhados e documentados pelos melhores cientistas há anos. Basta ler as pesquisas e documentos. No mais recente, datado de 28 de janeiro e apresentado ao Ministério Público Federal, alguns dos principais pesquisadores brasileiros afirmam (leia na íntegra):

“Considerando que as populações indígenas e ribeirinhas moradoras da Volta Grande do Xingu têm como fundamento de seu modo de vida a codependência com os processos ecossistêmicos da região, quaisquer alterações imponderadas, imprudentes e/ou precipitadas desses processos levam a cenários de fragilização desses povos num sentido amplo da expressão. Trata-se da imposição irreversível de perda da soberania alimentar das famílias locais que tende a ser agravada para as próximas gerações, de fragilização econômica associada à perda de biodiversidade vegetal e animal, além da perda de qualidade de vida e de saúde dessas e das próximas gerações”.

Desde antes de sua construção, especialistas no setor elétrico já denunciavam que Belo Monte serviria mais para produzir propina do que energia, já que o rio Xingu vive uma estação de seca por metade do ano. Mesmo assim, a obra foi construída: orçada em 19 bilhões de reais no leilão, em 2010, o custo hoje já ultrapassou os 40 bilhões de reais, a maior parte financiado por dinheiro público do BNDES. A corrupção foi finalmente exposta pela Operação Lava Jato, ao revelar propinas pagas pelas empreiteiras que construíram a obra ao PMDB e PT, partidos no poder durante a construção.

Grande parte dos alertas feitos pelo painel de especialistas que analisou o impacto do projeto de Belo Monte sobre o ecossistema antes mesmo do leilão da usina se confirmaram. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do Estadão, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, EL PAÍS e The Guardian já tinham revelado que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.

Além da inviabilidade técnica da usina, da corrupção e da destruição ambiental com efeitos em todo a região amazônica, a construção de Belo Monte foi determinante para converter Altamira, a principal cidade do Médio Xingu, na mais violenta da Amazônia. Em julho de 2019, a cidade foi também palco do segundo maior massacre carcerário da história do Brasil, com 62 mortos, a maioria decapitados ou queimados. Hoje, a cidade enfrenta, em plena pandemia, uma série de suicídios de crianças e adolescentes. A usina também foi determinante para tornar a região epicentro de desmatamento e de queimadas. Causou ainda grande impacto na saúde da população. O próprio Ministério da Saúde apontou o enorme aumento da desnutrição infantil de crianças indígenas durante a construção. Profissionais da saúde mental ligados à Universidade de São Paulo documentaram o impacto da expulsão do território produzida pela usina sobre a população ribeirinha no projeto Refugiados de Belo Monte. Obra totalmente paradoxal no cenário político do Brasil, a primeira turbina foi orgulhosamente inaugurada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, e a última orgulhosamente inaugurada pelo atual presidente, Jair Bolsonaro (sem partido), em 2019.

O atual e avançado capítulo de destruição é o que a Norte Energia e parte do governo, do mercado e da imprensa chamam de “Hidrograma de Consenso”, um nome digno da distopia de George Orwell. Na nota técnica do início de fevereiro, o próprio Ibama diz que não há consenso algum. Nas palavras literais: “Consideradas as evidências documentais de que os cronogramas A e B [vazões alternadas] NÃO foram oriundos de discussões técnicas envolvendo o Ibama, mas de uma decisão unilateral por parte do empreendedor, esse parecer se restringe aos mesmos como HIDROGRAMAS DE TESTE, e não de consenso”. (A caixa alta é do Ibama, não minha).

O “teste” mostrou o que já era antecipado pelos cientistas, a incompatibilidade entre uma quantidade tão reduzida de água e a reprodução da vida. O juiz federal que deu decisão favorável ao Ibama em detrimento da Norte Energia, no ano passado, baseou sua sentença no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”. Assim, “impôs ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”. Como afirmou a área técnica do Ibama, a Norte Energia não conseguiu provar: “Esse parecer não considera adequada a abordagem dada pelo relatório técnico [da Norte Energia], sugerindo sua DEVOLUÇÃO e readequação”. (mais uma vez, a caixa alta é do Ibama, não minha).

E então veio a motosserra da área que se diz econômica, com a ameaça do colapso energético, do risco à segurança nacional e do enorme “ônus aos consumidores”. Na prática, o Governo Bolsonaro rifou a Volta Grande do Xingu por supostos 157,5 milhões de reais para uma usina que custou mais de 40 bilhões, cuja principal acionista é a Eletrobras. E qual é o plano para a Eletrobras? A privatização, no qual o enorme passivo ambiental e humano de Belo Monte, consolidada no cenário internacional como uma catástrofe ecológica na Amazônia, é um sério entrave, porque isso que se costuma chamar de “mercado” é ávido e inescrupuloso, mas não é burro. Quem ganha? Quem perde? Os interesses em torno de Belo Monte, desde antes do seu controverso leilão, têm se mostrado bem pouco republicanos.

Aceitando por um momento, apenas como exercício mental, que os interesses são pelo bem público, que existe uma preocupação genuína com a questão energética e que os dirigentes podem provar aquilo que afirmam: colapso energético, ameaça à segurança nacional, 1,3 bilhão de ônus para os consumidores etc. Aceitando, apenas hipoteticamente, que essas afirmações estariam corretas e foram proferias de boa fé, o que temos do outro lado? O colapso já em curso de uma região de 130 quilômetros de floresta tropical habitada por povos indígenas, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, além de espécies de fauna e flora ainda não totalmente conhecidas, em um dos rios mais biodiversos do mundo. E isso num momento em que as principais autoridades do mundo, em todas as áreas, afirmam que a crise climática é o maior desafio da trajetória humana e que, para enfrentá-la, a Amazônia é estratégica. Este colapso, por sua vez, está totalmente documentado pelos cientistas mais respeitados para quem quiser se informar e estudar.

Aceitando ainda, apenas hipoteticamente, que a redução da produção de Belo Monte significaria um risco real de colapso energético, é importante assinalar que isso tornaria o planejamento brasileiro para o setor um arcaísmo incompatível com o atual momento global. Enquanto outros países, com muito menos potencial que o Brasil, têm feito enormes investimentos em energia solar e eólicas, o Brasil destrói a floresta e planeja destruir ainda mais, como já mostrou ao anunciar recentemente a retomada dos projetos hidrelétricos na Amazônia. Nenhum profissional sério hoje considera hidrelétrica na Amazônia “energia limpa”. Essa visão já foi totalmente superada pelas evidências bem documentadas da realidade e da ciência.

Aceitando apenas hipoteticamente que as duas premissas (e não apenas uma) são verdadeiras ―a do colapso ecológico, amplamente documentado, e a do colapso energético, essa apenas na boca de algumas autoridades do atual governo e suas visões ultrapassadas―, não seria sensato seguir o princípio básico da precaução? Algo dessa magnitude e impacto na maior floresta tropical do mundo não deveria ser ao menos amplamente discutido e com toda a sociedade? É assim, numa canetada, que o Governo de Bolsonaro condena um pedaço da Amazônia?

Destruir a floresta é destruir os padrões de chuva e do clima. É destruir a produção de alimentos, a renda dos agricultores e a competitividade e aceitação dos produtos brasileiros no mercado internacional. É impactar as condições de vida dos moradores de São Paulo e do Rio de Janeiro. É atingir o futuro de todos os habitantes do planeta. É disso que se trata. E, como o Governo é o agente da destruição, resta a nós impedir que mais um crime, esse de enormes proporções, aconteça. Ou a sociedade brasileira e global se mobiliza ou o ecocídio será consumado. Se a Volta Grande do Xingu morrer, estaremos dando mais um passo rumo ao nosso próprio suicídio como espécie.


Nesta quarta-feira, 17 de fevereiro, o guerreiro indígena Aruká Juma morreu de covid-19. Ele era o último homem dos Juma, povo amazônico exterminado ao longo das últimas décadas por sucessivos ataques genocidas. O risco da pandemia para um povo de recente contato era conhecido e a construção de uma barreira sanitária foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal. O Governo de Jair Bolsonaro não a fez. E o último Juma morreu. Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), no início do século 20 o povo Juma contava com 15.000 pessoas. Em 2002, estavam reduzidos a cinco ―um, dois, três, quatro, cinco. Hoje, não resta nenhum homem. O Governo Bolsonaro terminou de extinguir um povo e acaba de determinar a morte da Volta Grande do Xingu. Se seguirmos calados, é melhor sepultar logo isso que chamamos de Brasil. Numa vala comum, já que estão faltando covas nos cemitérios para tantos mortos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: Como pode uma empresa controlar a vida e a morte?

Com cinco anos de operação, a hidrelétrica de Belo Monte tornou-se um laboratório de como o capitalismo produz colapso ecológico na Amazônia

Imagine. E mantenha o fôlego.

Imagine que sua vida não é controlada por você, mas pelas grandes corporações. A serviço delas estão grande parte dos Governos e grande parte dos parlamentares. Pelo seu poder financeiro, essas corporações fazem pressão para aprovar leis favoráveis a seus interesses, financiam campanhas políticas, publicitárias e de marketing, financiam cientistas em universidades prestigiadas e financiam também outra indústria que entra em suas telas 24 horas por sete dias da semana, a de entretenimento. Você é estimulado a comer produtos ultraprocessados (bolachas de pacote, congelados, refrigerantes...), que, apesar de serem chamados de alimentos, são na verdade produtores de epidemias de obesidade em várias partes do globo, provocando doenças relacionadas que vão demandar os produtos de outra indústria, a farmacêutica. Agrotóxicos produzidos por corporações transnacionais são liberados pelas agências de Governos e contaminam os rios, que contaminam os peixes e também o lençol freático e assim a água que você bebe. Esses agrotóxicos envenenam ainda a comida que você bota na mesa para os seus filhos e estão relacionados a várias doenças de trabalhadores e também a suicídios.

soja que substituiu as florestas e as savanas serve para alimentar os animais que, depois de uma vida escravizada, serão enfileirados em pedaços despersonalizados nas prateleiras dos supermercados. Parte desses bois foram colocados sobre as ruínas da floresta apenas para garantir a posse da terra que era pública, o que faz com que a carne no seu prato seja o final de um processo que começou com a destruição da natureza. Esses bois são também uma das principais causas do superaquecimento global pelo metano que emitem ao arrotar. Em alguns países, como o Brasil, a população bovina é maior do que a humana, o que torna sua digestão uma catástrofe global. A roupa que você veste tem, na ponta visível, uma vitrine iluminada de loja, ou um site supereficiente que entrega produtos na sua porta.

Na outra ponta da cadeia, com frequência, tem trabalho escravo e também infantil em algum país pobre no outro lado do mundo, em fábricas ou porões insalubres, que às vezes explodem ou queimam, ou então na parte pobre e insalubre de um país rico. Essa ampla circulação de mercadorias e de pessoas (e agora também de vírus) demanda uma enorme quantidade de combustíveis fósseis (derivados de petróleo, carvão mineral e gás natural), principal causa do colapso climático. Quase tudo que rodeia você veio de alguma cadeia de mineração, que destrói o meio ambiente em grande escala e também contamina os rios, os peixes, diferentes espécies de animais e também humanos com mercúrio e outras substâncias tóxicas. Mais recentemente, as corporações estão fazendo mineração também no fundo dos oceanos, onde ainda há menor regulamentação ou nenhuma. Se nada for feito, os lindos documentários do fundo do mar que você assiste em canais de “natureza” serão em breve memorial de um passado que já não existe no presente.

Dizem que você é livre, porque é consumidor e seus filhos já nascem como consumidores e clientes. Tem, portanto, a fantástica escolha de consumir a marca e o produto que quiser com o dinheiro, invariavelmente menos do que você precisa, que ganhou vendendo o seu corpo e o seu tempo, que é tudo o que você tem. Caso você considere essa condição desumana e se revolte, se junte com outros para denunciar a violência dessas cadeias e desse sistema, as corporações têm o poder financeiro de pagar os melhores advogados e até mesmo pesquisas com cientistas de instituições respeitáveis, capazes de romper todas as amarras éticas para afirmar as conclusões que as corporações precisam para seguir comendo o planeta. Com a Internet, as corporações passaram também a financiar centrais de ódio, onde geram robôs e conteúdos falsos para acabar com a sua reputação —ou a da organização não governamental ou do movimento do qual você participa— com ataques e mentiras nas redes sociais. Toda voz dissidente deve ser combatida e, se possível, destruída. Destruir uma reputação é um tipo de assassinato.

Por trás de toda essa engrenagem que determina, regula e controla vidas há pessoas feitas da mesma matéria que você. Vale a pena lembrar que o planeta inteiro tem 2.153 bilionários, um número de pessoas que cabe num teatro grande. Juntas, elas têm mais riqueza do que 60% da população mundial. Na América Latina e Caribe, esses bilionários somam 73 pessoas. Um estudo da Oxfam mostrou que, entre março e junho de 2020, nos meses iniciais de pandemia, esses 73 aumentaram sua fortuna em 48,2 bilhões de dólares, o equivalente a um terço do total de recursos previstos em pacotes de estímulos econômicos adotados por todos os países da região. No Brasil, há 42 bilionários. Entre março e julho deste ano, período de intensa crise humanitária causada pela pandemia, eles aumentaram suas fortunas em 34 bilhões de dólares. Quando, com organização e luta, a sociedade da qual você faz parte ou o grupo que o representa conquista algum direito, uma entidade que chamam “mercado”, mas que você nunca viu, afirma que “vai quebrar a economia”. O mercado são essas pessoas e os executivos que trabalham para elas nas mais variadas áreas, destacando-se nesse amplo espectro os economistas. Quando os jornais dizem que o “mercado está nervoso”, é essa “meia dúzia”, comparada à população mundial, que sentiu uma comichão de estresse.

Parece um pesadelo? Essa distopia é a vida hoje no sistema capitalista neoliberal. Nesse sistema, o mercado é a base da organização da sociedade, com desregulamentação da economia, privatização das empresas estatais e enxugamento dos gastos sociais. Faz parte também uma ampla circulação de mercadorias, fluxo de capitais e de informações num mundo cada vez mais globalizado, fazendo com que se torne muito difícil, quando não impossível, fiscalizar e controlar as grandes corporações transnacionais. A sensação que você partilha com os bilhões que habitam esse planeta e não fazem parte dessa minoria dominante é a de que não controla a sua vida. Não é uma sensação.

O capitalismo neoliberal é o ápice do processo pelo qual a espécie humana provocou o colapso climático que hoje ameaça nosso futuro no planeta e provocou também a sexta extinção em massa de espécies, em curso nesse momento. Essa distopia é nossa vida atual e sua última realização foi nos trazer ao tempo das pandemias, que já matou quase 180.000 pessoas no Brasil e mais de 1,5 milhão no planeta.

O que isso tem a ver com Belo Monte, a usina hidrelétrica construída no Médio Xingu, uma das mais ricas e biodiversas regiões da Amazônia?

Tudo.

Um laboratório de catástrofe

A região atingida por Belo Monte é um microcosmo onde o modo de existência capitalista neoliberal foi imposto a outros modos de existência, como o dos povos indígenas e ribeirinhos, num curto espaço de tempo. Em apenas uma década, esse modo de operação provocou destruição em cadeia. Os piores efeitos estão só começando. Nesse momento, o grande embate é pela água, um embate que ecoa uma das maiores guerras do planeta, hoje e muito mais no futuro próximo, o que torna a observação dos acontecimentos do Xingu ainda mais importante.

A empresa concessionária de Belo Monte, a Norte Energia SA, controla a água do rio para a geração de energia e, portanto, controla a quantidade de água que alcança a região povoada por populações da floresta, mais especificamente indígenas e ribeirinhos. A região cuja água está sob controle da Norte Energia é povoada também por milhares de diferentes espécies de animais e vegetais, algumas delas endêmicas, o que significa que em todo o planeta só existem naquele lugar. No leilão da usina, em 2010, a Norte Energia era composta por pequenas empreiteiras. Hoje é composta em quase 50% pelo Grupo Eletrobras, 20% por fundos de pensão (Petros e Funcef) e o restante dividido em participações menores.

Quando a Norte Energia controla a água, a empresa transfigura um pequeno grande mundo na floresta amazônica, hoje cada vez mais perto do ponto de não retorno. O que é o ponto de não retorno? É o momento em que a floresta deixa de ser floresta, e assim deixa de fazer o seu papel essencial de floresta, que é o de regular o clima, para se tornar uma savana. Obviamente é um acontecimento progressivo, que hoje está em ritmo acelerado devido ao enfraquecimento dos órgãos de proteção, ao aumento do desmatamento e dos incêndios no Governo Bolsonaro. Sem a maior floresta tropical do mundo, vale lembrar, se torna muito difícil controlar o superaquecimento global.

Dentro desse pequeno grande mundo atingido por Belo Monte, há um microuniverso que é ainda mais brutalmente atingido, conhecido como Volta Grande do Xingu. Com extensão de 130 quilômetros de uma beleza acachapante, a Volta Grande é morada de dois povos indígenas, os Yudjá e os Arara, e de vários grupos ribeirinhos, considerados população tradicional da floresta, além de camponeses agroecológicos e pescadores. Também é fortemente atingido o rio Bacajá, afluente do Xingu, do qual depende a vida do povo Xikrin. Em uma década, o universo dessas milhares de pessoas entrou em colapso provocado por Belo Monte.

Há sempre títulos complicados e em geral falsos nesses empreendimentos predatórios. Faz parte da estratégia converter a população atingida, grande parte dela formalmente analfabeta da escrita, também em analfabeta dos ouvidos. Chamaram de “Hidrograma de Consenso” a administração da quantidade de água liberada pela usina para a Volta Grande do Xingu. A inclusão da palavra “consenso” é um mistério, já que jamais houve consenso algum. Portanto, mais do que um mistério, é um truque de marketing para confundir o entendimento e dificultar o enfrentamento. A luta pela água, que para os povos do Xingu é uma luta pela vida, sempre foi produzida no conflito, já que suas vozes foram ilegalmente ignoradas desde a decisão de implantar a usina.

Fatos, pesquisas científicas e experiência cotidiana mostram que a administração da água para a operação de Belo Monte está provocando a destruição da Volta Grande do Xingu e, portanto, a destruição da vida dos humanos e não humanos que vivem lá. André Oliveira Sawakuchi, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, afirma que o efeito do controle da água pela Norte Energia equivale a antecipar o colapso climático na Volta Grande do Xingu. “Possivelmente, o desmatamento no Alto Xingu e as barragens de Belo Monte têm um efeito muito mais severo (e em curso) na vazão da Volta Grande que a crise climática global”, afirma o geólogo, que estuda o Xingu e Belo Monte há anos. “Alguns estudos projetam redução de 30% na vazão do Xingu devido à emergência climática. Porém, o desvio de água para alimentar o reservatório intermediário já reduz a vazão em 35-40%, nos meses de setembro e outubro, no período da seca, e em 60-85% em março e abril, no período da cheia. Isso significa que a crise climática já chegou para a Volta Grande —e de forma mais severa.”

O Ministério Público Federal, que já moveu 24 ações pelas violações cometidas na implantação de Belo Monte, chama os acontecimentos ocorridos na Volta Grande de “ecocídio”. O conceito contempla o extermínio de um ecossistema ou bioma com todas as espécies que o constituem e busca a responsabilização dos agentes de destruição —pessoas, empresas, corporações, Governos. Os cientistas mais renomados do país, que pesquisam a região há décadas, já somaram suas vozes aos povos da floresta, ao afirmar que a administração da água proposta pela empresa está causando e irá causar um desastre ecológico que poderá levar espécies endêmicas à extinção e colapsar por completo a vida de indígenas e de ribeirinhos. Em maio deste ano, até mesmo o sistema financeiro internacional começou a se mover: o fundo soberano da Noruega, que administra mais de 1 trilhão de dólares, excluiu de sua carteira de investimentos a Eletrobras, por decisão de seu conselho de ética. A empresa, principal acionista da Norte Energia SA, foi deletada por “inaceitável risco de que contribua para sérias ou sistemáticas violações de direitos humanos”, devido à usina hidrelétrica de Belo Monte.

O roubo da água

No final de novembro, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) conseguiu obter uma decisão favorável na Justiça federal, que obriga a Norte Energia a manter um hidrograma “provisório”, até que os estudos possam ser concluídos, para garantir a sobrevivência da Volta Grande. Isso significa que a empresa precisa liberar mais água para o ecossistema do que ela demanda no maliciosamente chamado Hidrograma de Consenso. A decisão foi tomada pelo juiz federal Roberto Carlos de Oliveira com base no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”, “impondo ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”.

Quando a usina recebeu a licença de operação, em 24 de novembro de 2015, apesar de todas as denúncias de violações e todo o passivo ecológico, a Volta Grande já tinha começado a se transfigurar. No ano seguinte, os Yudjá, povo indígena que considera ter canoas em vez de pés, porque são parte do rio, chamaram o ano de 2016 de “o ano do fim do mundo” (leia aqui). Em 2020, porém, a seca foi ainda maior. Por consequência, a situação da Volta Grande ficou ainda pior. Em toda a região atingida por Belo Monte, houve uma morte massiva de peixes. Ribeirinhos avisaram pelo WhatsApp que o Xingu estava se transformando num cemitério. “Os filhos do Xingu já não reconhecem mais o vai e vem da água”, disse Raimunda Gomes da Silva, liderança ribeirinha que teve sua casa e sua ilha incendiadas pela Norte Energia.

De 9 a 12 de novembro, o núcleo de “Guardiões”, formado por indígenas dos povos Xipaya, Kuruaya e Yudjá, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, interditou a Transamazônica no quilômetro 27 para denunciar que os peixes não conseguiam fazer a piracema. Ou seja, a reprodução tinha sido interrompida. “Estamos unidos para defender as águas do Xingu e as nossas vidas. Belo Monte quer nos matar aos poucos, assim como faz com os peixes do Xingu, mas nós lutaremos”, escreveram em uma carta manuscrita. “Estamos aqui para mostrar a situação que temos vivido desde a chegada de Belo Monte e o roubo da água do Xingu. Faz cinco anos que estamos sofrendo os impactos da barragem [...] A nossa vida não pode ser ignorada. Nossas vidas importam!”, afirmaram em documento às autoridades.

Costuma-se mencionar peixes com a linguagem da mercadoria. Em gramas, quilos e toneladas. Nesse caso, Belo Monte matou toneladas de peixes. Mas peixes não são mercadorias, peixes são criaturas vivas, diversas e fascinantes. Em maio de 2019, o britânico The Guardian, um dos jornais mais ativos na cobertura do colapso climático, anunciou a atualização de seu manual de redação e defendeu em editorial a mudança da linguagem, para que a imprensa seja capaz de conferir exatidão à cobertura ao se referir a esse momento limite vivido pela humanidade. Não mais “mudança climática”, mas “crise, colapso ou emergência” climática/o. Não mais “aquecimento global”, mas “superaquecimento global” (global heating, difícil de traduzir para o português). Não mais toneladas, estoques e outros termos relativos a mercadorias para seres vivos —e sim populações e outros termos adequados àqueles que vivem. Foi um marco, infelizmente ainda não seguido pela totalidade dos grandes jornais do mundo.

Quando milhões de peixes são assassinados ou impedidos de se reproduzir, toda uma cadeia de acontecimentos entra em colapso. As cidades romperam sua conexão com a natureza, fazendo com que as pessoas que nelas vivem se esqueçam de que são também natureza, mas na floresta, mesmo uma floresta duramente afetada e atacada, como a amazônica, é possível constatar que nenhum acontecimento, por menor que seja, é isolado. Tudo se conecta e se afeta mutuamente. São relações sociais, são também relações de vida. A morte dos peixes é uma tragédia para os peixes, mas é também uma tragédia para todos os humanos e não humanos que lá vivem. E se é uma tragédia para todos eles, será uma tragédia que vai ecoando em cadeia pelo planeta.

“Eu estava indo colher uma castanha pra fazer um peixe no leite de castanha e ouvi um barulhinho de folha. Quando fui investigar, era um carrapato andando”, contou Juma Xipaia, uma das principais lideranças de seu povo, em uma entrevista pública que fiz com ela para o Wow Festival Mulheres do Mundo. “Levei um susto imenso. Se eu pude ouvir um carrapatinho andando no meio da floresta amazônica é porque está muito, mas muito seco.” Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, Juma tinha se recolhido à aldeia para se proteger da covid-19. “Na minha opinião, o animal que mais está em risco de extinção é o próprio humano, por não entender que cada ser, por menor que seja, tem sua importância”, diz a indígena. “Os humanos vão comendo o mundo como se fossem uma grande traça.”

As cenas de indígenas e ribeirinhos tentando salvar peixes é de uma tragicidade imensa. E a partir dela se desencadearam vários pequenos acontecimentos. Bel Yudjá, liderança da aldeia de Mïratu, na Volta Grande do Xingu, conta que seu povo testemunhou a chegada de uma horda de urubus. Já não é aconselhável deixar roupas nos varais, porque são arrancadas por esses animais fascinantes. Urubus também começaram a aparecer nas pias onde lavam a louça. Os urubus migraram para se alimentar dos peixes mortos. Só esse pequeno, muito pequeno acontecimento, muda o lugar para onde os urubus migraram e muda também o lugar que deixaram.

A natureza é muito mais delicada e complexa do que qualquer invenção humana. “Espero que a Justiça e o Ibama consigam garantir uma quantidade de água que nos permita viver na Volta Grande”, diz Bel Yudjá. “Já estamos nos transformando num cemitério de peixes, acredito que seremos um cemitério de árvores mortas. Estamos aqui, lutando, e esperamos que as pessoas se somem a nós nessa luta para que a Volta Grande possa continuar viva e a nossa vida deixe de estar ameaçada.”

A pergunta mais inconveniente

Desde que a água virou “insumo”, um objeto sujeito à administração para obedecer à necessidade de lucros de uma empresa e não às necessidades da vida de um pedaço da floresta tropical mais importante do mundo, a grande pergunta no Médio Xingu, é: como uma empresa é capaz de controlar a água de um rio e de um ecossistema inteiro e, portanto, a vida de humanos e não humanos? Como uma empresa pode ser dona da água?

Essa é uma pergunta que só pode ser formulada por quem ainda é capaz de se espantar com a forma como o capitalismo converte tudo em mercadoria. Quem vive nas cidades já tem dificuldades de se espantar e fazer perguntas como essa porque o sistema que destrói a natureza se tornou “natural”. Essa é uma inversão só possível pela mística do capitalismo, na qual o “selvagem”, o não sujeitado ao sistema, é apresentado como anomalia. Essa mistificação encobre a anomalia real, que é o sistema que nos últimos séculos destruiu o próprio planeta, nos trazendo ao momento atual, no qual a própria espécie se encontra ameaçada.

proliferação de negacionistas é a resposta de um sistema que já não consegue encobrir com os métodos tradicionais os sinais evidentes, que qualquer um já pode sentir em seu cotidiano, de que a vida humana no planeta está em risco. É o caso de Donald Trump, nos Estados Unidos, ocupando o cargo de maior poder da principal potência mundial, e de Jair Bolsonaro no Brasil, ao ocupar a presidência de um país estratégico para o controle do superaquecimento global, por ter 60% da floresta amazônica em seu território. Não basta usar os métodos tradicionais quando a realidade se impõe de forma tão contundente. É preciso provocar o caos instalando mentirosos no topo da cadeia.

Ainda assim, como a maioria vive em grandes cidades, as engrenagens são mais difíceis de enxergar porque já foram assimiladas, a maioria já nasceu dentro do sistema que a tritura e que lhe é apresentado como normalidade. Para os indígenas e ribeirinhos afetados por Belo Monte, não. Eles se abismam com aqueles que o pensador Yanomami Davi Kopenawa chama de “povo da mercadoria” ou “comedores de floresta”.

“Quanto vale a vida?”, perguntou Graça Yudjá, matriarca da aldeia Mïratu, a representantes da Norte Energia. “Essa é uma pergunta de levante da vida contra sua transformação em rendimento de energia elétrica”, diz a antropóloga Thais Mantovanelli em seu capítulo no livro Insurgências, ecologias dissidentes e antropologia modal (Imprensa Universitária). “A questão dos impactos da hidrelétrica tornou-se uma guerra para os povos afetados. Uma guerra de corpos índios, ribeirinhos, cromáticos, contra o monocromatismo dos uniformes azul-claros do corpo técnico burocrático de Belo Monte, que impõe o fim do fluxo das águas e o fim da circulação da vida.”

A implantação de Belo Monte e os impactos em cadeia gerados pela usina produziram, em uma década, uma catástrofe ecológica. E por isso Graça Yudjá se assombra. Catástrofes ecológicas só acontecem quando a vida é usurpada ao ganhar preço. É óbvio que o fato de o preço sempre ser baixo alarga o abismo, mas o crime fundador é a monetarização da vida para que seu valor possa ser comparado àquele gerado pelos lucros —e invariavelmente perder.

Na catástrofe ecológica produzida pelas forças que geraram Belo Monte, todos os elementos estão presentes. Um leilão suspeito de fraudes, seguido pela formação de um consórcio-construtor composto pelas maiores empreiteiras do país, que mais tarde seriam objeto de denúncias da Operação Lava Jato; a imposição sobre os povos originários e tradicionais, violando a legislação brasileira e também internacional; a repressão e criminalização dos protestos contra a usina promovidas por participantes de movimentos sociais, indígenas e ribeirinhos, usando a Força Nacional contra o povo; o uso do instrumento jurídico autoritário da Suspensão de Segurança para impedir que as obras fossem paralisadas e assegurar que a usina se tornasse fato consumado antes que as ações fossem julgadas; a utilização da Abin para espionar movimentos sociais em pelo menos um caso comprovado; analfabetos assinando papéis que não eram capazes de ler em que perdiam todos os direitos ou aceitavam indenizações irrisórias para deixar suas casas, terras e ilhas; o comportamento omisso (ou favorável à empresa) de órgãos federais e autoridades públicas que deveriam proteger o meio ambiente e os povos originários, mas não o fizeram ou o fizeram debilmente; a contratação de empresas de assessoria de imprensa que atuavam na desqualificação de jornalistas que denunciavam as violações de direitos na construção da usina, ao mesmo tempo em que faziam lobby junto à direção de jornais para enaltecer a “grande obra de engenharia”; mais recentemente, a contratação de advogados especializados em direito ambiental para processar jornalistas que denunciam os abusos da Norte Energia. Todo o funcionamento do sistema, que no caso de Belo Monte foi operado por um conluio entre Governo federal e empresas privadas, pode ser visto, identificado e analisado no caso Belo Monte.

Belo Monte é ao mesmo tempo paradigma, ao mesmo tempo laboratório. Apresentada como a maior hidrelétrica 100% brasileira, já que Itaipu é binacional, custou pelo menos o dobro do anunciado e hoje está orçada em torno de 40 bilhões de reais, grande parte desse montante financiado pelo setor público, no caso o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Divulgada como a quarta maior do mundo pela sua capacidade instalada de 11.000 megawatts, a verdade é que esse valor é apenas potencial. Como o rio Xingu vive metade do ano na seca, a real produção de energia, que no jargão técnico se chama “energia firme”, é, na média, menos da metade disso.

Essa é uma das principais razões pelas quais cientistas e técnicos apontavam —e apontam— a inviabilidade da hidrelétrica. Desde antes do início da construção, especialistas no setor elétrico já comprovavam que Belo Monte era inviável também para a produção de energia, devido à característica sazonal (estação de chuvas e estação de seca) do Xingu. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do jornal O Estado de S. Paulo, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, o EL PAÍS e o The Guardian revelaram que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.

Consenso em vez de polarização

Belo Monte mostra também como a ideologia para a Amazônia construída pela ditadura civil-militar (1964-1985) é persistente, ao manter-se viva e ativa na visão de desenvolvimento tanto da centro-esquerda como da extrema direita. Nesse olhar tipicamente de século 20, mas que no espectro partidário brasileiro ainda orienta os programas da maioria dos partidos, a floresta amazônica é tratada como objeto de exploração e seus povos são invisibilizados. Apesar de toda a polarização do país nos últimos anos, Belo Monte revelou-se o único consenso: a primeira turbina foi inaugurada por Dilma Rousseff (PT) e a última por Jair Bolsonaro (sem partido).

Durante a construção da usina, povos indígenas da região atingida, mesmo de recente contato, foram durante mais de um ano abastecidos com produtos industrializados, parte deles ultraprocessados. Para quem testemunhou o processo, foi como observar um experimento de laboratório em que povos originários foram usados como cobaias. O nome da pesquisa poderia ter sido: “como indígenas de recente contato da floresta amazônica se comportam ao ter sua alimentação repentinamente substituída por produtos industrializados”. O resultado foram doenças como obesidade, hipertensão e diabetes. O próprio Ministério da Saúde comprovou um aumento de 127% na desnutrição infantil entre 2010 e 2012 nas aldeias da região.

Desde o início da segunda década, o fluxo de indígenas na cidade de Altamira se intensificou, roças deixaram de ser feitas porque a comida chegava em latinhas e embalagens, o modo de vida foi profundamente alterado, a ponto de o Ministério Público Federal denunciar a Norte Energia SA por etnocídio indígena. Essa violenta transfiguração do território e da vida no território fez com que a covid-19 encontrasse as aldeias da região muito mais dependentes da cidade e dos produtos da cidade, o que expôs ainda mais a população originária aos riscos da pandemia. Belo Monte é também paradigma na produção de pobres, ao converter população tradicional da floresta em miseráveis nas periferias urbanas.

A corrupção do território também foi decisiva para converter Altamira na cidade mais violenta da Amazônia e uma das mais violentas do Brasil, com as periferias tomadas por facções criminosas. Em 29 de julho de 2019, essa violência foi decisiva para a irrupção do segundo maior massacre carcerário da história de país, ocorrido no presídio de Altamira, com 62 mortos no total. Nas periferias da cidade, há hoje uma geração de crianças sendo criadas pelas avós porque os pais foram assassinados nos últimos anos. Desde o início de 2020, Altamira testemunha uma série de suicídios de adolescentes, a maioria deles enforcados, fenômeno relacionado pelos especialistas à repentina e violenta transformação do território e do modo de vida da população produzidos por Belo Monte.

Um laboratório de resistência

O que os indígenas e ribeirinhos chamam de “roubo da água” é o mais recente capítulo. Certamente não será o último. Mas talvez seja o mais decisivo. Se não for impedido, como já foi amplamente denunciado por indígenas, ribeirinhos, cientistas, defensores públicos e procuradores da República, pode resultar no extermínio da Volta Grande do Xingu. Jansen Zuanon, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e um dos mais respeitados especialistas em peixes do país, explica que essa transfiguração da Volta Grande pode causar a extinção de espécies que só existem naquele ecossistema, como o famoso acari-zebra, personagem de adoração de visitantes que vêm de várias partes do mundo apenas para observá-lo em seu habitat. Jansen também explica que o que acontece com os peixes também acontece com as outras espécies e até mesmo com os humanos que vivem como natureza:

“A população humana e não humana que habita a Volta Grande está acostumada aos ritmos do rio e conhece os sinais. Essas populações organizaram as suas vidas em torno da previsibilidades desses ritmos. Quando uma empresa passa a regular a quantidade de água a partir da necessidade de energia demandada pelo operador nacional do sistema, uma entidade alheia ao Xingu e a todos os seus ciclos naturais, perde-se todo o sincronismo, desestruturando completamente os ciclos biológicos das espécies. Ao regular a água nas torneiras da usina, a empresa acaba afetando direta ou indiretamente todos os ciclos que acontecem na Volta Grande do Xingu. Nem os peixes, nem os tracajás (quelônios), nem mesmo os humanos conseguem reconhecer os sinais, que passaram a ser contraditórios. A única forma de impedir o desastre total é manter uma quantidade suficiente de água para todas essas espécies e manter também o ritmo natural. É necessário que seja previsível. Sem isso, a desestruturação do ecossistema será completo. Se Belo Sun conseguir se instalar, sobrepondo o seu impacto ao de Belo Monte, aí estaremos no fio da navalha.”

Enquanto Belo Monte seca a Volta Grande do Xingu e provoca um desastre ecológico e uma crise humanitária, com famílias ribeirinhas enfrentando a fome pela primeira vez, outra empresa, essa transnacional, avança sobre a Volta do Xingu. A mineradora de origem canadense Belo Sun pressiona há anos para a instalação do que é vendido como “a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil”. Para conseguir se instalar, produz um lobby intenso junto ao governo do Estado do Pará e junto aos parlamentares, em Belém, e também junto às comunidades locais da Volta Grande do Xingu, cada vez mais desamparadas e testemunhando seu mundo entrar em colapso. Se Belo Sun conseguir avançar, vai sobrepor o seu enorme impacto sobre o já enorme impacto de Belo Monte e deixará como legado uma montanha de rejeitos tóxicos cujos efeitos permanecerão por gerações.

Essa é a situação. No microcosmo chamado Volta Grande do Xingu é possível assistir, em tempo real, o movimento do capitalismo mais predatório em sua ação para subjugar a natureza e os povos que são natureza. É quase uma vitrine, um museu do presente ou, como é chamado pelo ambientalista Marcelo Salazar, “um museu de ruínas”.

A guerra da humanidade em transe climático está se passando lá, agora, em miniatura. Entre os que são natureza —e os que esvaziam a natureza e a convertem em mercadoria. Entre os que chamam o que é vivo de “recurso”— e os que chamam o que é vivo de “vivo”. Esse é o mesmo embate que, travado em larga escala no planeta, tem numa ponta os povos originários, a juventude climática liderada por Greta Thunberg e 99% dos cientistas do mundo, e, na outra, grandes corporações, governantes, políticos, executivos, advogados, publicitários e lobistas a seu serviço.

É por isso que os olhos do mundo se voltam cada vez mais para a Volta Grande do Xingu e Altamira, considerada epicentro da destruição da Amazônia. É importante sublinhar ainda que, se a região se tornou um laboratório da destruição, também tem se mostrado um laboratório de resistência. Contra forças imensamente mais poderosas e um poder econômico totalmente desigual, sofrendo no corpo os impactos da transfiguração de seu mundo, ribeirinhos, indígenas, pescadores, agricultores familiares e ativistas resistem. Nem por um dia sequer deram trégua à Norte Energia e mais recentemente também à Belo Sun.

Não podem, porém, seguir lutando sozinhos uma luta que é pelo planeta de todos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum